22 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE X: STONE WALL


Stone wall (muro de pedra) é uma estratégia de sobrevivência que visa oportunizar às vítimas de abuso o tempo e o espaço pessoal necessários para recuperar-se de situações emocionalmente extenuantes e reassumir o controle sobre a própria existência. E isso só se consegue afastando completamente o abusador do seu dia-a-dia, obstruindo qualquer possível via de acesso físico e virtual.

Parece drástico, mas é absolutamente necessário, particularmente quando se trata de narcisistas, porque eles não só não têm o menor respeito ou consideração pelos limites dos outros, como não assumem responsabilidade por absolutamente nada, sentindo-se mais do que à vontade para entrar e sair da sua vida conforme lhes for conveniente - isso se chama hoovering (pairar).

Em média, são necessários 7 rompimentos para que a vítima de um narcisista finalmente consiga encerrar de vez a relação. O problema é que a cada reconciliação, a "lua de mel" fica mais curta e o abuso mais pervasivo e violento. Isso acontece porque na cabeça do abusador, o seu perdão tem o efeito de um convite para abusar mais. Além disso, a cada vez que você tenta romper a relação, ele se sente humilhado pelo que quer que tenha se obrigado a fazer manter a relação, acumulando rancores e arquitetando vinganças com crescente crueldade. Não é a primeira nem será a última vez que ele passa por isso, então ao primeiro limite que você impuser na relação, ele já colocará seu plano B em ação. Não tenha ilusões: enquanto você ainda comemora o encontro da sua "alma gêmea" ele já está prospectando um parceiro-reserva para qualquer contingência.

A coisa mais importante para ser entendida nesta vida é que você não tem o poder de mudar ninguém além de si mesmo. Ao contrário do que ensinam as novelas, filmes e romances, o amor não é uma força mágica com poderes de transformar a fera numa pessoa normal. Isso se chama vontade e tem que partir da própria pessoa: ela é que precisa fazer todo o esforço e tomar por si só a iniciativa de buscar ajuda profissional e empenhar-se de corpo e alma na própria mudança.

Essa mudança de paradigma é importantíssima, particularmente para as mulheres brasileiras que seguem sendo emocionalmente educadas como se o abuso, os ciúmes, a gritaria, as atitudes extremas e violentas e a manipulação fossem "provas de amor". Assim como boas notícias não vendem jornal, amores saudáveis não dão bons romances, porque seus enredos carecem do tempero que prende o leitor. Mais do que modelos a serem buscados, os relacionamentos descritos nessas obras de ficção devem servir como exemplos dos sintomas de relacionamentos ruins e seus finais felizes vistos muito mais como uma vírgula do que pontos finais, porque encerram o ciclo daquele romance encaminhando para o próximo num crescendo que se não for interrompido a tempo, culminará num thriller de terror.

O amor não "perde a cabeça", não grita, não humilha, não machuca e jamais, em hipótese alguma, agride fisicamente. Amor é, acima de tudo, respeito. Mais do que qualquer outra coisa, o respeito é essencial a todos os relacionamentos. Sem respeito, não há apreciação, sinceridade, confiança e companheirismo, que são as bases necessárias a um relacionamento sólido e gratificante.

A falta de respeito é sim mais do que motivo para acabar com qualquer relacionamento. Ninguém quer, precisa e muito menos merece ser obrigado a conviver com alguém que não o respeita. Se por questões práticas o afastamento total não é viável no momento, o conselho é buscar o quanto antes a ajuda psicológica (acredite-me: você vai precisar de terapia para entender e superar em si as deficiências que o tornam vulnerável a esse tipo de pessoa) e com a ajuda dele, praticar o grey rock que descrevi na Parte IX desta série, enquanto se prepara e reúne as forças emocionais necessárias para botar em prática o próximo passo que é o stone wall.

Na prática, o stone wall é a absoluta erradicação da presença dessa pessoa da sua vida, erguendo uma barreira que a impeça de sequer contactá-lo por vias indiretas. Tendo estabelecido que seu parceiro, amigo, colega, vizinho ou familiar é um narcisista, com a ajuda do terapeuta você vai cuidar de se fortalecer emocionalmente para criar novas circunstâncias de vida e lidar com as consequências de eliminar essa pessoa da sua vida. Sim, isso requer planejamento e muita cabeça fria porque é algo que você terá que começar enquanto ainda estiver convivendo com essa pessoa tóxica e ainda vai duvidar de si e voltar atrás várias vezes até que finalmente entenda que não tem volta.

stone wall não é um joguinho de se fazer de difícil para chamar atenção, mas a única forma segura de se livrar do drama e do sofrimento e colocar um ponto final no abuso que você vem sofrendo. Tendo decidido pelo stone wall, guarde segredo absoluto e ensaie mentalmente a situação até sentir-se preparado para dar o primeiro passo que é afastá-lo do seu convívio diário.

Você vai precisar planejar cuidadosamente este afastamento, porque narcisistas tendem a reagir com violência e crueldade ao sentirem-se rejeitados. Você vai precisar observar o momento, criar circunstâncias e recorrer a subterfúgios para conseguir isso. Não hesite em pedir ajuda, mas seja muito cauteloso ao escolher seus confidentes para evitar cair nas mãos de um flying monkey - e, creia-me, muitas pessoas tiveram a desagradável surpresa de constatar não poderem contar com as próprias famílias para isso.

O ideal é poder contar com um intermediário absolutamente neutro e isento, como um advogado, por exemplo e deixar toda a negociação a cargo dessa pessoa, reportando-se a ela e a ela somente - sem exceção. A ideia é evaporar-se da vida do narcisista, e fazê-lo pode ser desconfortável e gerar alguma culpa. Se ajuda, lembre que o respeito é uma via de mão dupla: quem não dá, não merece receber; engula seco e vá em frente. 

Se está casado ou numa relação estável, existem questões legais que você não pode ignorar a não ser que esteja disposto a perder a guarda dos filhos junto com quaisquer bens que tenha compartilhado com o narcisista. Acredite-me: ele irá lutar com unhas e dentes para manter tudo exatamente onde está mesmo que já esteja desfilando publicamente com o novo parceiro e prometa de pés juntos "livrar-se" dele para ficar só com você. Isso é só uma estratégia para ganhar tempo até que consiga consumar sua vingança subtraindo tudo que lhe for mais precioso para então largá-lo como um saco de lixo - o que fará com um sorriso de grande satisfação e intenso prazer.

Se você tem filhos menores com o narcisista, o mais provável é que tenha que esperar até que atinjam a maioridade para conseguir afastar-se por completo, mas ainda assim é possível implementar boa parte do stone wall, tomando várias precauções como bloqueá-lo e aos seus flying monkeys em todas as redes sociais das quais participe e instruindo seus amigos e familiares a fazerem o mesmo. Também é importante estabelecer um sistema de contatos indiretos com ele, restringindo-os a emails e mensagens - evite até mesmo os telefonemas. E esses contatos devem ater-se somente às questões objetivas como horários em que ele virá pegar as crianças ou trazê-las de volta: não responda às provocações e não discuta em hipótese alguma. Tampouco permita que ele passe do portão da sua casa ou emprego: informe porteiros, colegas e vizinhos que tal pessoa não está autorizada a ingressar nas áreas comuns do condomínio. Se junto com o advogado tiver juntado provas suficientes, obtenha uma ordem restritiva e não hesite em chamar a polícia sempre que se sentir ameaçado.

Documente tudo. Acostume-se a manter uma agenda, registrando datas e horários para todo o contato que tiver com ele: você pode vir a precisar desses relatos em juízo ou numa delegacia de polícia e não pode confiar na própria memória, porque a tensão emocional e os desvios cognitivos que o narcisista implantou em você na "lua de mel" tendem a confundir sua percepção depois de algum tempo, e parecer confuso e inseguro diante de um juiz ou delegado não vai ajudar em nada.

Tipicamente, o narcisista desrespeitará os dias e horários estabelecidos para a visitação, tentando aparecer de surpresa ou ignorando as crianças por semanas, mesmo meses a fio para aparecer de uma hora para a outra coberto de sorrisos e com os braços carregados de presentes. Registre e documente tudo e informe seu advogado sempre que isso acontecer.

O ideal é poder contar com alguém que não esteja emocionalmente envolvido na situação para representá-lo em todos os contatos com o narcisista. Você pode combinar com um motorista profissional da sua confiança para levar e buscar as crianças nos dias de visita, por exemplo. E se o narcisista se recusar a devolver as crianças, não hesite em acionar a justiça: não é raro que eles usem desse artifício para forçar um tête-à-tête - que é a última coisa que você quer que aconteça, a não ser que goste de ser abusado verbal e, em certos casos, fisicamente.

Se o narcisista é que ficou com a guarda das crianças, a primeira coisa a entender é que ele (ou ela) as usará para chantageá-lo sem a menor consideração pelo prejuízo que suas ações venham a causar aos próprios filhos. Mais razão ainda para documentar absolutamente tudo. Considere usar parte do tempo que tem com as crianças para prover o amparo e assistência psicológica profissional de que certamente necessitarão nem que seja preciso agendar horários flexíveis ou especiais com o terapeuta: ele será uma peça-chave no caso que estará montando junto com seu advogado para obter a guarda e preservar seus filhos do sofrimento causado pelo convívio com uma pessoa emocionalmente perturbada.

Resista às tentativas de chantagem que se sewguirão. Ao contrário do que o narcisista tentará fazer parecer, ela não acabará no momento que você ceder, mas ficará cada vez pior. Ceder à chantagem de um narcisista é se colocar nas mãos de uma pessoa que não quer nada de bom para você e tudo que se relacione a você - incluindo seus filhos, mesmo que sejam filhos dele também. Ao ver-se preso à teia, em situações aparentemente sem saída, pense no amanhã, no que quer para si e, principalmente, na qualidade de vida que quer para os seus filhos e busque ajuda profissional. Aplique o grey rock: faça-se frio, duro e insondável como uma pedra cinza para o narcisista: não lhe dê nenhuma reação emocional e procure ganhar tempo até  você e sua rede de apoio encontrarem uma saída.

Nem todos os narcisistas são psicopatas, mas todos os psicopatas são narcisistas e estabelecer essa diferença é difícil até para profissionais especializados. Não tendo como saber se você e sua família correm risco real e imediato, é prudente partir do princípio de que esse é o caso e tomar as devidas precauções para reduzir e, se possível, eliminar os riscos. As crônicas policiais nos trazem exemplos diários de pessoas que falharam em se acautelar devidamente.

Agora, se você não tem filhos com o narcisista, todo o processo é bem mais direto desde que você aceite que provavelmente perderá bens e dinheiro no processo. Se tiver tempo, recursos e suficiente frieza emocional, você até pode manobrar para reduzir o prejuízo, mas já vou avisando: demanda tempo, sagacidade e muita diplomacia para conseguir se afastar de um narcisista sem deixar para trás alguns anéis e fios de cabelo.

O próximo passo é cortar todas as vias de comunicação e livrar-se de tudo que sequer lembre a existência dessa pessoa: fotos, presentes, cartas, mobília, roupas... o que for. Se puder, mude de casa, mude de ares, mude de círculos sociais. Afaste-se dos amigos dele e de qualquer amigo ou mesmo familiar seu que tente defendê-lo sem desculpas ou explicações. Troque todas as suas senhas e bloqueie o narcisista e todas as pessoas próximas a ele em todas as redes sociais de que participe e revise as configurações de privacidade dos seus perfis de forma a controlar o acesso às suas informações: nunca faça check-ins públicos em bares, restaurantes, academia, locais de trabalho, etc... não faça updates públicos e seja muito criterioso ao aceitar pedidos de amizade.

Apague o número dele do seu telefone e troque o seu número para não receber mais nenhuma ligação ou mensagem. E se recebê-los, não responda - de preferência sequer visualize emails e mensagens. Outra coisa: se o narcisista tinha acesso ao seu computador, tablet ou celular, a fim de evitar surpresas desagradáveis, procure o quanto antes um técnico e peça que faça uma varredura por atividades suspeitas e/ou programas espiões.

Tendo feito isso, discipline-se para não buscar online qualquer informação sobre a pessoa. E sempre que sentir aquela urgência em falar umas verdades, escreva numa folha de papel e depois queime tudo. Certifique-se de ficar fora do radar dele: narcisistas defendem com unhas e dentes o que consideram ser seu círculo de influência e a melhor maneira de se proteger dos seus ataques é deixar que siga agindo livremente dentro dele. Se recuse a ouvir fofocas ou novidades sobre o narcisista: a partir do momento que o tirou da sua vida, nada do que ele fizer o do que acontecer do outro lado do muro é da sua conta ou responsabilidade.

Creia-me: a menor concessão só vai servir para atrair ainda mais caos e sofrimento para a sua vida.

E não perca um segundo do seu tempo para tentar devolver na mesma moeda: a vingança é o piloto-automático do narcisista. Sequer cogite ficar por perto para ver quando ele quebrar a cara. Mais cedo ou mais tarde é exatamente isso que vai acontecer e, acredite em mim: isso não vai trazer a menor satisfação, não vai ajudar em nada na sua vida, a única coisa que esse tipo de pensamento faz é aprisionar você àquela pessoa e permitir que ela continue controlando os seus sentimentos. Entenda: o grey rock é uma estratégia a qual os próprios narcisistas recorrem com frequência como forma de afirmar o quanto são superiores, mas enquanto para eles isso é só um jogo de cena, para nós é o ponto final, significando que paramos de jogar e largamos mão de vez.

Pratique algum exercício físico para dar vazão à raiva que vai sentir à medida que se desintoxica e percebe a extensão do abuso, a crueldade das mentiras, maquinações e manipulações a que se submeteu por aquela pessoa. Sim, a consciência do quanto traiu a si mesmo e do quanto se sacrificou por alguém que absolutamente não o respeita como um ser humano é muito, mas muito revoltante. Mas isso é problema dele, não seu.

Nos momentos de fraqueza, entenda que você está se recuperando de um vício - literalmente. Os ciclos de sofrimento e êxtase que o narcisista criou na sua vida o deixaram viciado em emoções intensas. Todos sabemos o triste fim que aguarda os viciados mais cedo ou mais tarde na vida, e eu não quero isso para você. Você não quer isso para si mesmo.

Vai passar. Os primeiros dias podem ser bem difíceis, mas quanto mais tempo você passar totalmente alheio à mera existência daquela pessoa, melhor, mais fortalecido e mais em paz vai se sentir.

Finalmente, fica o conselho: não busque outro relacionamento sério enquanto sentir o menor impulso de dar uma lição no narcisista. Primeiro, porque é usar outra pessoa exatamente do mesmo jeito que o narcisista usou você. Segundo, porque está fragilizado emocionalmente e as chances de cair como um patinho nas garras de outro narcisista são imensas, particularmente dos que se disfarçam de ombro amigo, cheios de compreensão e conselhos dimensionados para desarmar as poucas defesas de que dispõe e abusar de você logo adiante.

Concentre-se mais em resgatar sua auto-estima pelos próprios meios: aproveite para estudar, viajar e se enriquecer como pessoa. Igualmente, aproveite para revisar alguns conceitos ultrapassados sobre si mesmo, o que quer, o quanto se dispõe a dar e o que merece receber em troca nos relacionamentos em todas as instâncias da vida. E tendo definido, cuide de nunca mais deixar por menos.

18 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE IX: GREY ROCK


O termo grey rock (pedra cinza) foi cunhado por psicólogos comportamentais para designar uma técnica de auto-defesa emocional que com a prática leva à neutralização do abuso emocional. Por aqui conhecemos essa estratégia como "cara de paisagem" - algo que aplicamos na maioria das vezes de forma espontânea ou inconsciente.

Basicamente, o grey rock consiste em fazer cara de paisagem e não deixar transparecer emoção alguma, dedicando-se a observar sem absorver a toxicidade de pessoas "difíceis", e seu emprego é recomendado sempre que nos sentimos desconfortáveis na presença de alguma pessoa ou em determinados ambientes. Nem todas as pessoas "difíceis" são narcisistas, mas todos os narcisistas são pessoas "difíceis". 

Praticar o grey rock vai ajudá-lo em três níveis:
  1. neutralizar o impacto da agressão verbal no momento que ocorre
  2. preservar e/ou clarear seu raciocínio durante a agressão verbal
  3. ajudá-lo a reconhecer em si mesmo os pontos sensíveis que o tornam vulnerável às agressões
Observe, não absorva*

A agressão emocional é sempre e necessariamente uma estratégia de intimidação à qual recorrem indivíduos emocionalmente fracos quando vêem frustradas tentativas anteriores e mais sutis de manipulação. Pense numa criança fazendo birra: por impressionantes que pareçam os gritos e ofensas do abusador, ele está agindo exatamente da mesma maneira. Gritos e ofensas são sinais de derrota, não de vitória. Portanto, a primeira coisa que precisa entender é que quando o outro grita e ofende, a vantagem é sua, conquanto se mantenha calmo e não entre no jogo do agressor: gritos e ofensas são uma tentativa de empurrá-lo para o único terreno onde o agressor se sente em vantagem, porque é um terreno que domina melhor do que você e se você está lendo este artigo, é bem provável que já tenha cedido anteriormente, e se arrependido profundamente depois.

Eu quero ajudar você a acabar de vez com esse arrependimento. Eu quero que você assuma o controle sobre a própria vida e decisões. Eu quero que você viva em paz, porque a felicidade só faz ninho onde existe paz.

Talvez não seja muito fácil no começo, mas nós precisamos que você persista, que insista depois de ter falhado: ninguém é perfeito e é muito difícil manter a calma quando estamos sendo ameaçados e/ou acusados de coisas tenebrosas. Ninguém nasce com sangue de barata, mas podemos aprender. E não tem limite de idade para aprender.

Então, eu quero que você comece praticando a observação.

Observe aos outros, observe a si mesmo.

O humor do parceiro/amigo/colega mudou? Observe.

O seu humor mudou? Observe.

O humor das pessoas à sua volta mudou? Observe.

E enquanto observa, pergunte-se:
  • Como está se sentindo com essa mudança?
  • Está ansioso, nervoso, tenso?
  • Por quê?

Quando nos sentimos ansiosos, nervosos ou tensos, nosso instinto de sobrevivência está mandando um recado, antecipando uma situação potencialmente ameaçadora antes mesmo de termos consciência disso. Então, observe e pense. Tente lembrar se disse ou fez alguma coisa que pudesse ter incomodado essa pessoa - pessoas "difíceis", e narcisistas em particular, se ofendem com as palavras e atitudes mais inocentes e insignificantes, e isso é problema delas, não seu - a não ser que pretenda andar pela vida pisando em ovos e sendo usado e abusado por esse tipo de gente.

Se o outro simplesmente explodiu na sua cara sem aviso, eu quero que você recue um passo dentro da sua cabeça. Faça cara de paisagem e não reaja: não diga nada, não faça nada - apenas observe. E observando, pergunte-se: por que esta pessoa está agindo assim comigo exatamente neste momento? Lembre: neste primeiro momento, o foco não é você. Por mais que o outro queira fazer parecer, o foco é ele: ele é que está incomodado, ele é que tomou a iniciativa, ele é que começou, logo, o problema é dele, não seu. Observe do que está sendo acusado, exatamente: quando se trata de narcisistas, eles têm o patético hábito de acusar os outros de agirem exatamente como eles próprios estão agindo pelas suas costas. Então, ao invés de se defender das acusações, por revoltantes e irreais que pareçam, observe e guarde. Não responda às acusações, apenas diga que retomará a conversa quando ele estiver mais calmo.

Caso a explosão resulte de você ter criticado alguma conduta do outro, e ele reagir acusando você, finja ser um disco riscado e insista no seu questionamento original: não se deixe enrolar. Quando acuadas, essas pessoas costumam partir para o ataque, muitas vezes recorrendo a argumentos totalmente estapafúrdios com o intuito de colocá-lo na defensiva. Mantenha a calma, faça cara de paisagem e volte à crítica que fez no começo de tudo. Ouça o que ouvir, mantenha-se calmo na certeza de que existe os motivos que o levaram a começar a conversa são válidos, e isso é tudo que importa no momento.

Se estiver discutindo com um narcisista, prepare-se para ter todos os seus fracos atingidos com crueldade. Esse modus operandi é tão universal que a gente chega a desconfiar que narcisistas não nascem: são fabricados em série e escondem o código de barras por trás do umbigo.

Não absorva. Essas pessoas são como vampiros que se alimentam das emoções dos outros - e são viciadas nelas. Como todo o viciado, elas vão aumentando as doses na tentativa de voltar a sentir o "momento mágico" da primeira vez que experimentaram. Isso é particularmente perverso nos relacionamentos "amorosos" - e aqui falo especificamente dos narcisistas: como são incapazes de reciprocidade, a etapa da acomodação por que passam os relacionamentos afetivos normais é para elas o fim do relacionamento. Portanto, o momento de sedimentação que permite a uma relação se consolidar no companheirismo capaz de manter-se por uma vida inteira é o fim, para o narcisista, porque no seu entendimento, amor é a paixão desenfreada cheia de incertezas e inseguranças: esse nível  de intensidade tem que ser uma constante para o narcisista e ele fará de tudo para prolongá-lo, mesmo que isso signifique esgotar o parceiro emocionalmente.

A questão aí é que como seus sentimentos não são autênticos, por exacerbados que aparentem ser, depois de uma briga descomunal, o narcisista vira para o lado e dorme como um bebê enquanto você perde o sono tentando se acalmar e fazer algum sentido de tudo que aconteceu. Em poucos meses, você estará em frangalhos enquanto ele já busca a próxima vítima - e, acredite-me, sempre há uma próxima vítima.

Observar sem absorver é o primeiro passo para você se salvar antes que a toxicidade dessa pessoa destrua sua identidade e vontade de viver. Até aqui eu venho explicando e demonstrando como funciona a mente dessas pessoas, para ajudá-lo a entender o porque de serem capazes de fazer tanto mal aos outros e seguirem convencidas de que elas é que foram as vítimas. Nem você nem ninguém vai mudar isso. Você só pode mudar a si mesmo. Você só pode salvar a si mesmo.

Pratique meditação, qualquer método que o ajude a criar e manter uma barreira invisível entre suas emoções e essa pessoa: observe a pessoa tóxica, entenda a pessoa tóxica, mas não absorva sua toxicidade na certeza (e isso é absoluta certeza mesmo) que nada do que elas dizem ou fazem é por sua causa, em absolutamente todos os sentidos.

O ideal é afastar-se, cortar relações e ignorar a própria existência de pessoas tóxicas, mas isso nem sempre é possível: às vezes essas pessoas são nossos pais, irmãos ou parentes de quem não podemos simplesmente nos afastar de uma hora para outra - e creia-me: pessoas tóxicas são especialistas em criar circunstâncias que tornam difícil a distância física. Não podemos absolutamente mudar o seu comportamento, como nos tratam ou como se dirigem a nós: enquanto existirem, seguirão manipulando, fofocando, caluniando e criando dramas desnecessários por motivos fúteis, nos agredindo e ofendendo sempre que quiserem de nós algo que não estamos dispostos a dar. Como eu afirmei mais acima, esse é o jogo delas, e é um jogo no qual sentem-se vencedoras há décadas.

Observe, não absorva. Repita para si como um mantra. Escreva num bilhete e cole na geladeira, se necessário: observe, não absorva.

Usando o grey rock, ou "cara de paisagem", você aprende a ocultar o impacto emocional que elas têm sobre si. Você se expõe menos aos ataques primeiro, porque se sua expressão é neutra, fica muito difícil para elas identificarem os seus pontos fracos para usá-los contra você. Segundo, porque ao verem que não conseguem extrair o suco precioso das suas emoções, elas acabarão desistindo, deixando-o em paz enquanto partem para buscar outra vítima, e como a iniciativa terá partido delas mesmas, se sentirão menos inclinadas a buscar a vingança fazendo a sua caveira por aí. Aí sim, você pode implementar o próximo passo que é cortar todo o contato, erradicando todos os traços da presença dessas pessoas em sua vida, fechando a porta e botando uma boa trava com cadeado para nunca, mas nunca mais mesmo abrir.


* a técnica "observe, não absorva" foi desenvolvida pelo terapeuta norte-americano Ross Rosenberg, um dos poucos especialistas no tratamento de vítimas dos narcisistas.

17 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE VIII: O QUE É MEU É MEU, O QUE É SEU É NOSSO


Essa é uma crença muito frustrante para quem precisa conviver com um narcisista em família, na escola ou no trabalho: ao mesmo tempo que protege com unhas e dentes o que considera "suas coisas", narcisistas não mostram o menor respeito e não têm o menor pudor em usar, abusar ou mesmo surrupiar os recursos alheios. Isso é feito de maneira mais ou menos ostensiva, dependendo do grau de dissimulação do narcisista.

Narcisistas dissimulados gostam de se mostrar generosos, comprando a lealdade dos outros com presentes e agrados - preferencialmente adquiridos com recursos de terceiros: é a famigerada cortesia com o chapéu alheio Se pretende levar a nova conquista numa viagem, por exemplo, os recursos necessários serão obtidos de colegas, amigos, familiares ou mesmo o parceiro-titular, com as "emergências" variando de tom e intensidade na proporção do empréstimo desejado: transporte, hospedagem, dinheiro para as despesas, seja o que for. E ele é capaz de elaborar com riqueza de detalhes as histórias mais trágicas e confidenciá-las a você com as mãos tremendo e os olhos marejados, se for preciso. Sei de um que tirou férias, redecorou o apartamento e gozou de um estilo de vida privilegiado por três anos com o dinheiro que extorquia de uma idosa convencida que estava ajudando com exames, consultas e medicamentos no tratamento de um tumor no cérebro da parceira dele.

Nem mesmo um saldo bancário bastante favorável inibe o narcisista de tentar viver às custas dos outros. Para obter esses recursos, ele pode prestar um pequeno favor à vítima do golpe, como oferecer sua preciosa presença para um jantar (a ser pago pela vítima), mostrando-se particularmente aberto e compreensivo, ouvindo suas lamúrias e aconselhando-a "de todo o coração", para pouco tempo depois pedir de volta algum favor: carro, roupas, dinheiro ou as chaves da casa de praia, e por aí vai.

No que tange a recursos e favores, independente da natureza, a relação com um narcisista é sempre assimétrica. Narcisistas delirantes consideram o tempo investido na presença de alguém capital suficiente para essa troca, enquanto os dissimulados cuidam de simular a reciprocidade inflando o significado e importância do que quer que estejam oferecendo em troca. Se você ligar num momento de necessidade, por exemplo, o narcisista cuidará de informá-lo que tem um compromisso importantíssimo para pouco mais adiante, então virá ao seu encontro controlando o relógio tão ansiosamente que, constrangido, você acabará agradecendo e dispensando-o - talvez para flagrá-lo sentado num bar com amigos meia hora depois. É que os tais "compromissos urgentes" nunca são tão urgentes - se é que existem de todo - como o narcisista gota de fazer parecer, mas sim uma estratégia que ele emprega para valorizar-se aos seus olhos, extorquindo sua gratidão sem dar absolutamente nada em troca. Porque ele sabe como nos sentimos em dívida quando alguém larga tudo para se fazer presente quando chamamos.

Narcisistas também podem usar objetos de sua propriedade para obter acesso irrestrito às residências de pessoas consideradas necessárias, "emprestando-os" ou deixando-os sob a guarda dessas pessoas pretextando algum incidente ou situação inesperada, manobrando para obter as chaves do local onde se encontram seus objetos, garantindo assim não só o livre acesso como o uso dos recursos do local (telefone, luz, cama, cozinha, o que for) com o adicional extra de lá poder se instalar em caso de necessidade e pelo tempo que julgar necessário - caso em que removê-lo antes que tenha encontrado outro refúgio se mostrará difícil, conflituoso e potencialmente arriscado.

Nada do que o narcisista faz é espontâneo muito antes pelo contrário: tudo é planejado, medido e dimensionado para servir a segundas intenções.

Como percebe objetos como extensões de si mesmo, eles precisam ser os melhores, maiores, mais vistosos e invejados, devendo ser expostos como obras de arte. Manipulá-los envolve alto risco, pois o menor dano é visto como uma ofensa pessoal. No nível psicológico, esses objetos são extensões físicas que servem para compensar deficiências do narcisista. A paixão do sujeito franzino por seu 4x4 trai um traço de narcisismo mensurável pela extensão da sua relação com o veículo, que pode ir cumulativamente da mera ostentação ao ciúme doentio.

Paralelamente, o narcisista desvaloriza tudo que é propriedade dos outros. O que é dele é para ser guardado e o que é dos outros, usado (senão abusado) e descartado. O zelo e apreciação que dedica aos seus objetos não se estende à propriedade alheia, por ele tratada de forma desdenhosa e desleixada mesmo que seu objeto seja um surrado par de calças jeans e o do outro um smoking. Essa desvalorização é ainda maior se o narcisista deseja para si o objeto de outrem, que ele barganha para comprar barato, para depois, ainda por cima, exibi-lo para terceiros, cantando vantagem do tolo que enrolou.

Quando abrimos as portas de nossas casas, o fazemos entendendo que o visitante obedecerá o código de conduta implícito em nossa cultura, permitindo-se algumas liberdades à medida que a amizade ou relação se aprofunda ao mesmo tempo que esperamos reciprocidade nessas liberdades. Isso não existe com o narcisista, que a partir do instante que avança da soleira da porta passará a testar deliberadamente os seus limites, e se você não se mostrar inflexível, ele não só tomará conta do ambiente como não mostrará o menor constrangimento em aparecer de surpresa a qualquer momento do dia ou da noite acompanhado de estranhos e incentivando-os a se comportarem com o mesmo relaxamento que demonstra ao atirar-se no sofá, revirar a geladeira ou as estantes, bisbilhotar pelos outros cômodos ou ligar a televisão como se estivesse em casa. Isso pode ocorrer de maneira mais ou menos dissimulada. Para forçar seus limites ele pode, por exemplo, se mostrar tocado e agradecido pela sua hospitalidade, ou confidenciar que o excessivo rigor do parceiro torna a própria casa um ambiente inóspito onde ele não se sente à vontade; ou pode simplesmente dispensar arrogantemente os seus protestos: tudo depende do grau de utilidade que atribuiu a você na escala das suas relações.

Por outro lado, se o visitante é você, sempre há alguma coisa impedindo que se sinta à vontade na casa do narcisista. Às vezes é um sentimento vago, por mais solícito que ele se mostre, que impede que você relaxe naquele ambiente. Muitas vezes é porque soube pelo narcisista das "manias" do parceiro ou outras pessoas que lá residam, e para evitar qualquer inconveniente ao anfitrião, você cuida de obedecer às "regras da casa". Seja como for, é difícil sentir-se "em casa" na casa de um narcisista na mesma proporção que ele parece sentir-se à vontade na sua casa.

Empréstimos ao narcisista são a fundo perdido. Seja dinheiro ou objetos, tendo conseguido por as mãos em alguma coisa sua, é muito difícil que venha a devolver, podendo "perdê-la" se você insistir muito. É uma coisa tão absurda que ele pode chegar a jogar fora o que tomou emprestado só para não devolver. Os empréstimos são outra estratégia que narcisistas usam para conhecer os seus limites enquanto determinam o seu grau de "utilidade".

Não é raro que a iniciativa para criar uma relação de trocas desta natureza parta do próprio narcisista, que tentará emprestar ou mesmo "doar" alguma coisa, via de regra algo de que ele queira se desfazer e que para você tem igualmente pouco uso ou necessidade como uma peça de vestuário, por exemplo; insistindo e argumentando ante a sua recusa de forma a constrangê-lo a aceitar. Tendo aceitado esse "favor", você naturalmente se sentirá obrigado daqui para a frente a corresponder. Não surpreendentemente, no entanto, os objetos e/ou favores que ele virá a pedir em troca serão incomparavelmente mais valiosos e úteis, e se não tiver seus limites muito firmes e claros, você pode facilmente chegar a ponto de se privar de coisas das quais necessita para atendê-lo.

O que é preciso entender disso tudo é que independente da natureza da sua relação com um narcisista, ela sempre será não-recíproca e assimétrica, com a balança pendendo cada vez mais para o lado dele. E quanto mais o narcisista dever, mais vai lhe cobrar e mais à vontade mais à vontade vai se sentir para tomar o que quiser quando e como lhe aprouver.

E isso vai seguir acontecendo até que você entenda que se depender do narcisista, sua obrigação é entregar todos os seus ovos de ouro sorrindo e mostrando-se agradecido pelos ovos podres que recebe em troca.

Simples assim.

10 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE VII: NENHUM REMORSO


Uma pessoa pode apresentar comportamentos tóxicos sem ser necessariamente uma pessoa tóxica. A diferença entre "comportar-se como" e "ser"se mede pela capacidade de perceber o prejuízo que causa aos demais, demonstrar remorso autêntico e se esforçar de fato para corrigir tais comportamentos.

O narcisista é incapaz disso: ele cria o caos e culpa os outros. Se chega a admitir um erro, o faz como estratégia para manter a boa vontade da outra pessoa podendo até prometer corrigir-se, e simular pedidos sinceros de ajuda ao ofendido, para tão logo se sinta seguro, não só abandonar todos os esforços retomando o comportamento tóxico anterior ao conflito, como transferindo ao outro a responsabilidade e empenho em "consertar" a situação e cuidando de responsabilizá-lo não só direta e pessoalmente, como perante terceiros, podendo até recorrer à Justiça buscando "reparação".

Quanto mais grave for a ofensa por ele cometida, mais ofendido se mostrará com a vítima. Isso porque além de ser incapaz de admitir os próprios erros, ele projeta seus próprios nos outros: se explora financeiramente uma pessoa ela é que o está explorando; quando  trai seu parceiro, o faz porque está sendo traído; se abusa dos favores, é porque está sendo abusado e não há prova ou argumento capaz de fazê-lo ver a realidade.

Até porque tentar trazer à razão um narcisista pelo diálogo é como falar por um telefone sem fio: por mais que seja claro e objetivo, o narcisista reage como se você tivesse falado outra coisa completamente diferente. Você diz "pedra" e o narcisista entende "pau". Você pode repetir "pedra", explicando e demonstrando sua aparência e constituição física. O narcisista então dirá: "todo mundo está sabendo que é um pau, só você é burro de não ver e insiste em usá-lo como uma pedra". Diante da sua persistência, muitas pessoas intelectual e/ou emocionalmente frágeis começam a duvidar de si mesmas, dos próprios olhos e ouvidos e acabam pedindo desculpas. Outras, achando que não vale a pena discutir, decidem deixar para lá.

Esse "telefone sem fio" com inversão de culpa se chama gaslighting, e é entendido como uma estratégia de manipulação que cria uma cortina de fumaça, distraindo o oponente do foco da discussão ao mesmo tempo que o leva a duvidar dos próprios sentidos e cognição.

Assim entendemos porque partimos de um princípio de realidade que admite objetivamente não só a existência como a autonomia das outras pessoas.

Explico: toda a forma de manipulação parte do pressuposto de que o outro existe e está ali como um indivíduo autônomo cuja vontade queremos dobrar. Se não acreditássemos nisso, não haveria necessidade de divisar estratégias que o induzam a agir conforme nossas vontades ou expectativas. Essa noção é fundamental no que se chama "princípio de realidade". Só que o narcisista não atingiu esse estágio evolutivo.

Embora desfilem pelo mundo agindo e discursando como as pessoas mais racionais e maduras, emocionalmente os narcisistas seguem paradoxalmente presos à noção primitiva de um "eu" não individualizado, mas fundido todo o resto. Seus esforços naturais de diferenciação e autonomia foram sequestrados, de forma que sua personalidade não se formou amalgamando predisposições genéticas, experiências, sensações e influências para formar um todo ao qual novas experiências vão se juntando e redefinindo ao longo do tempo. Ela foi, sim, estilhaçada sob a pressão das expectativas do seu ambiente de origem para encaixar no molde que lhe era destinado: os fragmentos julgados "bons" foram consistentemente isolados e elevados à condição de definidores do próprio ser do narcisista ao mesmo tempo que os "ruins", julgados inaceitáveis, foram rechaçados e recalcados a ferro e fogo, resultando numa espécie de golem de aparência impressionante, mas essencialmente artificial.

Como se não bastasse, esse ambiente essencialmente opressor mostrou-se também perverso, pois os próprios elementos de referência se isentaram de prover eles próprios o exemplo prático das atitudes e comportamentos que exigiram da criança, ainda por cima usando insidiosamente do vexame e da humilhação como formas de punição.

A questão é que, como bem apontou Jung, queira ou não todo ser humano tem um lado obscuro ou uma "sombra", como ele próprio denominou. É nela que arquivamos e seguimos acumulando os rancores, raivas, frustrações, angústias, ressentimentos e todos os sentimentos e impulsos "negativos", junto com os aspectos ou vieses que desprezamos ou julgamos inaceitáveis em nós mesmos. Esse caldo de hostilidades vive em constante ebulição no inconsciente de todos, sem exceção. Ainda segundo Jung, enquanto não nos tornarmos conscientes e lidarmos com nossas próprias sobras, elas seguirão nos assombrando, materializando-se em pessoas ou circunstâncias que as reflitam de volta para nós.

Paralelamente a isso, suficientes pesquisas já comprovaram que a noção de justiça é integra a programação genética do ser humano: bebês de colo protestam tanto ao se verem alvos como ao perceber injustiças cometidas a terceiros.

Tendo tudo isso em mente, podemos começar a entender a dimensão da sombra carregada desde cedo pelos narcisistas e desenvolver alguma noção dos mecanismos inconscientes que lhes permitem ignorar completamente a presença de conteúdos negativos em si mesmos, projetando-os nos outros com tanta obstinação. 

Cada pessoa com quem o narcisista trava contato não é por ele percebida dentro do contexto específico daquele momento não como um indivíduo, mas como um golem personificando um dos conteúdos do seu próprio inconsciente. Se percebe o contexto da interação como "positivo", ele vê o outro como um golem benigno; se negativo, como maligno independente do histórico das interações entre ele e cada pessoa.

Por isso, mesmo que olhe, toque e se dirija a você, não é você à luz da sua história pessoal e de de tudo que ambos vivenciaram juntos que ele vê, mas a parte específica de si mesmo que as suas atitudes estão evocando naquele exato contexto. Parece maluco, e de certa forma o é. Imagine viver só "no momento" e terá como consequência os dois extremos: o Buda iluminado cuja noção de "eu" engloba o "todo", e o narcisista que é exatamente o oposto: um "eu" que se afirma pela negação do "todo". 

O narcisista é impermeável ao sentimento de remorso porque, em última instância, tudo que faz é direcionado e si mesmo e as consequências de suas ações habitam o vácuo representado pelas vidas dos outros cuja existência desconhece, já que nada existe ou persiste fora do seu campo de percepção. Não é que o narcisista "decida ignorar": ele é de fato incapaz de extrapolar qualquer dimensão humana fora do espectro limitado e limitante das suas projeções. O universo do narcisista não é real, objetivo, linear, lógico e causal conforme o percebemos; mas uma Ilha da Fantasia povoada por mínions onde ele reina onipotente, onisciente e onipresente.

Quando insulta e ofende a sua honra, por exemplo, o narcisista está apenas usando-o como um receptáculo da cólera que sente para consigo mesmo naquele momento. E aqui deixo uma dica preciosa para o momento que alguém se ver injustamente acusado por um narcisista: suas acusações costumam revelar exatamente o que ele próprio está fazendo às escondidas.

Por ofensivo que consiga ser, nada do que o narcisista faz ou deixa de fazer nesta vida tem a ver com qualquer um, além dele mesmo. As pessoas que cruzam o seu caminho são hospedeiros temporários para suas próprias facetas. Se o agradam, são boas, ótimas, excelentes, as melhores do mundo. Se o contrariam são más, péssimas, incompetentes, as piores do mundo. E esses  julgamentos são tão fluidos como circunstanciais: a pessoa maravilhosa de ontem é o hipócrita de amanhã não por ser consistentemente uma pessoa assim ou assado, mas por ter cedido ou negado um agrado ou favor.

Obviamente sua irresponsabilidade pessoal não os isenta da culpa. Muito mais que passar a mão pela cabeça e sentir pena dos "coitadinhos", o que eu pretendo aqui é ajudar você a compreender os mecanismos psicológicos que permitem a essas pessoas cometer maldades e se mostrar ultrajadas quando confrontadas com as consequências.

Se devidamente endereçado antes da idade adulta, o narcisismo pode ser contido de forma a não evoluir para a malignidade. Dificilmente será erradicado, mas com os devidos cuidados e atenção de terapeutas especializados, pode ficar limitado às formas mais brandas com as quais é possível conviver, estabelecendo vínculos afetivos em contextos relativamente benéficos.

O indivíduo com tendências narcísicas sempre será mais refratário às críticas do que a média das pessoas, e seguirá criando intrigas e manipulando os outros para obter alguma vantagem pessoal; mas pelo menos o fará dentro do princípio de realidade, aceitando alguma responsabilidade sobre suas ações e será, pelo menos, capaz de sentir remorso pelos danos que sua conduta porventura vier a causar - por mais que relute em admiti-lo publicamente.

8 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE VI: INTIMIDAÇÃO


A intimidação é um comportamento estratégico usado para forçar outro a entregar alguma coisa. O assalto é o exemplo clássico: antecipando que você não entregará seus bens por livre e espontânea vontade, o bandido se aproxima apontando a arma para sua cabeça. Assustado e temendo pela própria vida, você entrega o que ele está exigindo.

Portanto, sempre que sentir-se intimidado por alguém, cabe a pergunta: o que essa pessoa espera obter de mim desta maneira? 

Intimidadores seguem exatamente a mesma lógica do assaltante. Só não andam apontando revólveres por aí. Ao invés disso eles usam da linguagem oral com ofensas ou insinuações, e/ou corporal, mostrando dominância ou superioridade com uma postura corporal invasiva, desrespeitando seu espaço pessoal. Mas apesar de parecer representar um perigo real e imediato, essa atitude é um blefe: se a pessoa que intimida tivesse o poder de obter pelos próprios meios o que espera de você, ela o deixaria em paz.

Fica a dica, então: sempre que alguém apela para a intimidação, é porque está numa posição de inferioridade, logo, o problema é dele e a vantagem, sua.

Seria temerário, no entanto, confrontar cegamente indivíduos que usam da intimidação para se impor, pois quanto mais frágeis se sentem por trás do mise en scène, mais violenta será sua reação. O importante aqui é saber que é isso que está acontecendo, entender que você é que tem vantagem na situação e tentar ganhar tempo até encontrar uma saída que não comprometa sua integridade física, mental, emocional e financeira. A reação ideal quando se sentir intimidado é  dizer calma e firmemente "desculpe, não posso tratar disso agora" e se afastar.

O que o narcisista não consegue pela boa vontade das suas vítimas, ele busca obter pela intimidação seja por chantagem ou ameaças que podem ser sutis e subjetivas (acabar com a amizade, por exemplo), como passíveis de enquadramento penal. Tudo depende tanto do modus operandi do narcisista em questão como do quanto ele está necessitado do que quer que se encontre em seu poder.

Em outras palavras: enquanto as pessoas seguirem deslumbradas com seu elan, fazendo concessões na ilusão de estarem sendo beneficiadas pelo que quer que a atitude do narcisista pretenda oferecer, ele seguirá se sentindo à vontade para tomar mais do que se dispõe a contribuir seja em termos materiais ou emocionais. Mas o menor sinal de desconforto ou tentativa de impor limites às liberdades que se permite são percebidas pelo narcisista como uma humilhante ofensa pessoal.

Digamos, por exemplo, que o narcisista é seu sócio num empreendimento e você acaba de descobrir que ele vem desviando quantias significativas do caixa da empresa para gastos pessoais. Ao tentar confrontá-lo, por mais tato que use, suas palavras serão tomadas como uma ofensa pessoal e ele reagirá colérica e desproporcionalmente elevando o tom do que seria uma discussão normal entre sócios a uma enxurrada de ofensas e desaforos pessoais que fazem parecer pequenas as transgressões dele diante da sua incompetência em conduzir o negócio e cumprir com as suas obrigações, enfatizando o quanto está cansado de carregá-lo nas costas e inventar desculpas para os clientes que, por sinal, o seguirão quando deixar a sociedade. Intimidado, você cede só para constatar algum tempo depois que ao invés de diminuir, os saques aumentaram. A empresa está no vermelho, os fornecedores começam a suspender as entregas ou só vender à vista, os impostos e a folha de pagamento estão em atraso. E enquanto você corta despesas em casa, mal conseguindo rolar a dívida do cartão de crédito e perde noites de sono tentando resolver os problemas, seu sócio narcisista troca a BMW com seis meses de uso por uma Land Rover zero quilômetro. E quando as intimações e cobranças judiciais se acumulam na sua mesa, ele resolve levar a nova namorada para passear na Bahia. Afinal, nada disso é problema dele, porque você é o sócio-titular e ele não tem patrimônio algum em seu nome para ser apreendido e levado a leilão. Por esdrúxula que pareça, essa situação acontece com muito mais frequência do que se imagina. Que o digam os advogados e contadores.

Com  amigos, por exemplo, o narcisista pode abusar da hospitalidade, indo e vindo quando quer e bem entende e ignorando as regras do condomínio que, afinal, não foram feitas para ele que nem inquilino é. Ou ele pode tomar objetos emprestados sem pedir, abrir a geladeira e beber a única cerveja sem se dar ao trabalho de perguntar. E se o amigo reclamar, a própria existência da "amizade" será posta em xeque, e suas intenções virulentamente atacadas como egoístas, mesquinhas e por aí a fora. Ao ceder, o amigo arrisca chegar em casa do trabalho um dia para encontrar o narcisista com a namorada ou uma turma de estranhos degustando o vinho que você vinha reservando na adega e devorando os petiscos que comprou para receber os amigos no dia seguinte.

Se for seu colega de trabalho, o narcisista pedirá que complete ou corrija suas tarefas às escondidas do chefe. "Fico lhe devendo essa" é a promessa que nunca é cumprida, pois ele sempre tem uma "emergência" que o impede de retornar o favor. E se por azar flagrá-lo cometendo algum ato ilícito, se deixar intimidar a ponto de fazer vistas grossas para meses, para subitamente ser demitido sumariamente como se fosse o autor dos ilícitos que ele cometeu - e não se surpreenda se a "denúncia" tiver partido do próprio narcisista.

O que os exemplos acima pretendem demonstrar é que ceder à intimidação só piora situações que já eram difíceis de manter. Ceder à intimidação por mais que evite alguma situação desagradável no presente, não só não impede que o que quer que se tente evitar acabe acontecendo de qualquer jeito, como abre um caminho sem volta para mais abusos e exploração. É como a chantagem: depois de ter pago o preço, que garantia você tem que de que vá parar? A pessoa bem pode decidir - e normalmente é o que acontece, que tendo obtido a quantia inicial com relativa facilidade, vale tentar arrancar outro tanto mais.

Por difícil que pareça quando acontece, o ideal é pagar o blefe do narcisista logo de saída e arcar com o prejuízo livrando-se dessa pessoa de uma vez por todas, porque tendo conseguindo intimidá-lo uma primeira vez, o narcisista seguirá intimidando com mais urgência e agressividade para obter o que quer, como e sempre que quiser até que você não tenha mais nada a oferecer, caso em que, independente do quanto tenha cedido e sido condescendente, será humilhado publicamente e descartado como uma fralda usada.

Caso a situação envolva risco pessoal ou patrimonial, não tente resolver tudo sozinho. Procure manter a calma por acuado que se sinta, e tente ganhar tempo do jeito que der, nem que para isso precise fingir um desmaio ou sair correndo do local: não tenha medo de parecer fraco ou covarde, até porque é assim que o narcisista o vê de qualquer jeito, caso contrário não tentaria intimidá-lo. O importante é interromper no ato a intimidação sem se comprometer com resposta alguma, e tratar de buscar apoio e conselho junto a familiares, amigos e profissionais em quem confia. Dê preferência a pessoas que não tenham nenhum envolvimento com o narcisista e seja totalmente honesto, por embaraçosa que seja a situação: você não é a primeira nem será a última pessoa a ter se submetido a situações vexatórias sob a pressão de um narcisista. Na verdade, eles costumam agir exatamente assim e forçar exatamente os limites que você julga mais elevados, porque sabem que as pessoas preferem comer sozinhas o pão que o diabo amassou a permitir que alguém saiba sobre a lama por onde se deixaram arrastar. Se você leu o post anterior sobre os flying monkeys, a esta altura já entendeu que é exatamente isso que vem acontecendo desde o começo, pois desde o momento que você cedeu pela primeira vez, o narcisista vem se encarregando de espalhar a "novidade" aos quatro ventos.

Não se desespere se se vir retratado ao ler essas linhas aparentemente duras: tudo, mas tudo mesmo nesta vida tem solução. Cada um de nós veio a este mundo suficientemente equipado para superar qualquer desafio que a vida apresente, e capaz se solucionar qualquer problema. Confie na qualidade do que carrega no coração e entre as orelhas: ninguém neste mundo está tão ocupado em ajudá-lo como você mesmo.

Por piores que sejam as fofocas, armações, calúnias e difamações de que você pode se ver alvo por não ceder à intimidação do narcisista, mantenha-se firme e confiante, na certeza de duas coisas: primeiro, que seriam muito mais graves caso tivesse cedido e, segundo, que todas as pessoas que entram em contato com o narcisista são alvos de fofocas, armações, calúnias e difamações do mesmo jeito que você, e se parecem poupadas ou premiadas pelas atenções dele, é só porque estão cedendo, talvez mais vergonhosamente que você.

Erga a cabeça e siga em frente com sua vida, lembrando as sábias palavras de Abraham Lincoln:
Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo ou todas as pessoas durante algum tempo, mas nunca todas as pessoas o tempo todo.
Não perca seu precioso tempo de vida tentando explicar ou defender-se, muito menos tentando expor ou vingar-se do narcisista: isso só o manterá dentro do foco de atenção dele estendendo desnecessariamente uma situação que de outra forma se encerraria caso ele estivesse concentrado em outra vítima. As pessoas não são estúpidas: cedo ou tarde acabam vendo o narcisista pelo que realmente é e se afastando.

Se parar e avaliar com calma e lucidez, resistir à intimidação, afastando-se do narcisista corresponde a separar o joio do trigo. É um momento de verdade, um divisor de águas que vai ensinar quem são seus verdadeiros amigos. Depois da tempestade sempre vem a bonança, e seu jardim, amigo, voltará a florir ainda mais do que antes.

7 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE V: FLYING MONKEYS


Antes de falar sobre flying monkeys, gostaria de deixar algumas coisas bem claras:

Primeiro: não existe "fofoca inocente" e ninguém é fofoqueiro por acidente: toda fofoca visa prejudicar alguém ao mesmo tempo que garante alguma vantagem ao fofoqueiro. Esta é uma das poucas regras sem exceção, por menor que seja a vantagem objetiva para o fofoqueiro, como por exemplo, exibir-se como uma pessoa "influente" que tem acesso a "informações privilegiadas" que o objeto da fofoca só revelaria a alguém muito íntimo, mesmo apesar de, na maioria das vezes estar repassando uma fofoca de segunda ou terceira mão.

Revelar "segredos" da vida de uma pessoa a terceiros é desrespeitoso, perverso e desleal. É pura maldade, muitas vezes gratuita. Gente civilizada ao ouvir uma fofoca se interessa mais no que ela revela do fofoqueiro do que no conteúdo da fofoca em si, pois é das mentes pequenas que vêm as maiores traições. Não que sejam lá tão brilhantes assim, é tudo questão de foco, como bem definido por Eleanor Roosevelt:
Grandes mentes discutem idéias, mentes medianas discutem eventos e mentes pequenas discutem pessoas.
A fofoca é uma arma poderosa na construção e destruição de carreiras e reputações. Pedimos a Deus que nos mantenha longe das más línguas, fugindo delas como o diabo da cruz. Mas nem toda a reza do mundo impede que elas venham até nós e de forma particularmente ofensiva quando entramos mesmo que desavisadamente na mira de um narcisista. Porque se há arte ou ofício em que o narcisista se supera é em criar intrigas plantando fofocas por onde quer que passe.

E mentes pequenas e medianas são o terreno fértil onde ele cultiva seus flying monkeys.

Flying monkeys são os macacos voadores que servem à Bruxa Malvada do Leste no Mágico de Oz, e que ao mesmo tempo que espionam o reino para informá-la sobre tudo que acontece, atazanam e aterrorizam seus desafetos.

Os flying monkeys a serviço do narcisista fazem exatamente a mesma coisa, chegando a comprar brigas que não são suas por "tomar as dores" do narcisista. Portanto, regra de ouro número 1 para não virar uma marionete a serviço de terceiros é jamais tomar a si as dores de outro adulto e ir "tirar satisfações" no seu lugar. Se começar a realmente observar o comportamento das pessoas ao seu redor, provavelmente vai se surpreender com a quantidade de tempo e energia que as pessoas desperdiçam tramando e manipulando para que outras tomem uma atitude (que caberia a elas próprias tomar) ou assumam alguma responsabilidade no seu lugar.

Manipulados pelo narcisista, os flying monkeys praticam o bullying ou assédio moral convencidos de estar defendendo uma boa causa e/ou punindo uma pessoa egoísta e cruel.

A imensa maioria das pessoas em algum momento já usou ou foi usada como um flying monkey, isso faz parte do aprendizado necessário ao convívio social, e costumamos evitar esse tipo de envolvimento tão logo atingimos plena consciência das ramificações e consequências negativas para todos os envolvidos. Essa consciência pode ser atingida cedo na infância ou na idade adulta, dependendo do tempo que cada pessoa leva para amadurecer emocionalmente, abandonando a crença de que o mundo deve se  curvar e adaptar aos seus desejos e caprichos e aceitando de vez o princípio de realidade, ou a existência de  limites e consequências para suas ações; tornando-se capaz de suportar a dor como contingência e recusando gratificações imediatas que tenham como resultado dano ou prejuízo para si ou para os outros.

Em toda a sua vida, o narcisista jamais chegará a atingir a maturidade emocional caracterizada por esse estágio. Ainda ontem li um artigo num site para psicólogos aqui do Brasil algumas "dicas" para tratar o narcisista com carinho e compreensão e ajudá-lo a buscar ajuda profissional. Nada poderia ser mais errado e até insidioso para as pessoas que estão sofrendo sob o domínio tirânico de um narcisista: o narcisismo é tão curável quanto a psicopatia, a sociopatia e outros transtornos de personalidade. O narcisismo não é uma condição ou doença, é um desvio estrutural causado por traumas profundos e persistentes nos estágios iniciais da formação afetiva de um ser humano. A personalidade narcisística é o "robô gigante" que essa criança criou para defender-se, e fez isso tão cedo no desenvolvimento que ao chegar à idade adulta já não existe distinção entre seu organismo e a máquina que inventou. A única possibilidade de reversão desse processo é a intercessão terapêutica anterior à sua consolidação tanto da criança como de todos os seus familiares, entre os quais, via de regra, haverá pelo menos, senão vários narcisistas.

 De mais a mais, ainda são raros os especialistas em saúde mental devidamente preparados e emocionalmente equipados para tratar devidamente o problema. O que se vê nos fóruns de ajuda mútua são cônjuges e familiares que tendo procurado a ajuda de um terapeuta acabaram vitimizados também por esse, sendo inúmeros os casos de pessoas que foram não só sujeitas a tratamentos, internações e medicamentos de que não necessitariam se vingassem se afastar física e emocionalmente dos narcisistas em suas vidas.

Enfim, voltando aos flying monkeys... antes de sair pela tangente, eu estava dizendo que os flying monkeys são um estágio na nossa evolução emocional e para isso não é preciso nenhuma ciência: basta observar o comportamento de crianças e adolescentes nos pátios das escolas. E para conhecer as estratégias de sobrevivência social praticadas pelo narcisista, basta observar o comportamento dos bullies, e, particularmente no tema que estou abordando aqui, os da sua "turma", particularmente como a pessoa do bully é o que sustenta e mantém sua "união", e em como essa fragilidade é compensada por gestos, gostos, crenças, comportamentos e modismos estereotipados que só fazem sentido no contexto da gangue. Via de regra, o bully maior, ou o "cabeça" é aquele que se recusa a abandonar os trejeitos e modismos, no máximo os adaptando quando é transferido para um ambiente novo, onde logo cuidará de criar outra gangue. Os demais, quando adequadamente providos de estrutura e amparo emocional não têm grandes dificuldades em abandonar o "jeito de ser" da gangue ao deixá-la seja por iniciativa própria ou pela intervenção de alguma autoridade ou referência adulta.

Embora muitos narcisistas persistam criando e liderando gangues, clubes, grupos, empreendimentos, cultos ou times para dar vazão à raiva e hostilidade que permeia sua relação com o mundo ao longo da vida adulta; outros tantos reservam tais sentimentos para manifestá-los na intimidade de seus lares. Aqui arrisco a hipótese totalmente empírica e sem nenhum embasamento em pesquisa, de que os primeiros foram vítimas de abuso paterno ou de uma referência masculina quando pequenos e os segundos de abuso materno ou de uma referência feminina, tendo os primeiros como foco da hostilidade a sociedade em geral e os segundos os círculos íntimos compostos por amigos e familiares.

Desculpem se saí pela tangente outra vez: enquanto escrevo, estou elaborando um manancial de informações coletadas ao longo de décadas de leituras sobre um tema que começou como uma curiosidade pré-adolescente sobre o episódio dos Mucker, um grupo de fanáticos religiosos dizimado pelas forças policiais na colônia alemã do Rio Grande do Sul ainda no tempo do Brasil-Império, passando por Charles Manson, pelo suicídio coletivo dos 900 seguidores de Jim Jones em 1979, para citar alguns exemplos, percorreu dezenas de biografias de serial killers até descobrir-se no rastro narcisismo como o longo fio que percorre os meandros e recônditos desse labirinto de tragédias. Muito do que estou escrevendo nestas páginas são constatações, elaborações e notas soltas que só agora começam a ganhar corpo e coerência.

Como soldados são instruídos apenas com as informações necessárias ao cumprimento de suas funções no terreno de batalha, o narcisista abastece seus flying monkeys com informações parciais, a sua versão do fato, ou mentiras deslavadas, conforme convir no momento. Isso se aplica a todas as pessoas visadas pelo narcisista, incluindo os próprios flying monkeys. Essa estratégia cria um clima de desconfiança e competição quando não animosidade orquestrado pelo narcisista para evitar qualquer troica de informações não supervisionada, com o adicional de criar um clima de suspeição para neutralizar potenciais queixas, reclamações ou tentativas de exposição por quem quer que se sinta por ele lesado ou prejudicado.

O narcisista não tem o menor pudor em caluniar seus flying monkeys, alimentando e superdimensionando eventuais indisposições, e quando aconselha o faz para aprofundar os conflitos a fim de se estabelecer como único elemento "confiável" no grupo.

Laços familiares e amizades de longa data podem ser vaporizados pelo narcisista sem o menor remorso ou pudor e em pouco tempo. Quanto mais útil se mostrar o flying monkey, mais o narcisista buscará isolá-lo, intermediando suas relações na tentativa de colocá-lo sob seu controle. Suspeito que assim aja porque manter o controle sobre diversas pessoas relativamente autônomas ao mesmo tempo seja mentalmente extenuante, e o controle absoluto significa menos um elemento com quem se preocupar.

Não cansarei de enfatizar que servir como flying monkey não oferece imunidade alguma às fantasias humilhantes criadas pelo narcisista. Por mais que você tenha dado provas de fidelidade, honestidade e comprometimento, isso não o impede nem nunca impedirá de expor suas fraquezas e intimidade acrescentando ou mesmo inventando histórias a seu respeito sempre que julgar conveniente ou perceber alguma vantagem.

O respeito, indulgência e fidelidade absolutos que o narcisista exige para si, ele só dedica ao(s) abusador(es) da sua infância, elevado(s) à condição de ser(es) infalível(eis) e irrepreensível(eis): de maneira simplista, ele(s) precisa(m) ser perfeito(s), para resignificar e tornar aceitáveis as humilhações e maus-tratos de que foi alvo ainda antes de compreender as primeiras palavras.

Portanto, para encerrar, desenvolva em si a disciplina de sempre que alguém vier falar de outra pessoa para você, perguntar: o que essa pessoa pretende obter me contando isso? E se não souber responder ou desconfiar das intenções dessa pessoa, pergunte na cara, na lata mesmo: por que está me contando isso?

A experiência ensina que é por mentiras e jamais pela verdade que se perdem as amizades que vale a pena manter nesta vida.

5 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE IV: AMOR EM TRÊS ATOS


Para todos os narcisistas, sem exceção, o amor é uma peça em três atos: paixão, desvalorização e descarte. Independente da religião, formação, nível cultural, econômico, formação, histórico familiar ou qualquer outro fator, narcisistas em todo o mundo seguem à risca esse roteiro como autômatos dotados de uma programação prévia. O que varia é o tempo, a intensidade e o estrago que deixam para trás.

As etapas desse ciclo são objeto de várias publicações especializadas e sua regularidade pode ser atestada na leitura dos relatos feitos por homens e mulheres do mundo inteiro em fóruns e grupos online de ajuda mútua. Em centenas de canais no Youtube que tratam exclusivamente do assunto, indivíduos das mais diversas nacionalidades dão seu testemunho, com por milhares de visualizações.

A maneira como o narcisista se relaciona emocionalmente é tão regular e estereotipada que procurar pelo código de barras com os dizeres Made In China já virou piada entre as pessoas que conseguiram se recuperar o suficiente para ver algum humor na situação.

Fase 1: Não sei viver sem você

É o chamado love bombing (bombardeio amoroso), caracterizado pelo foco excessivo na relação: a troca constante de mensagens (narcisistas preferem SMS, Whatsapp e outros aplicativos de troca de mensagens a telefonemas porque não permitem que a outra pessoa desconfie de seu paradeiro) a ponto de atrapalhar a vida profissional, familiar e social de seus alvos com um verdadeiro bombardeio de declarações e emoticons que objetivam na verdade mantê-lo informado sobre quando, onde e na presença de quem está a outra pessoa a cada momento do dia. Mais que uma demonstração de afeto, essas mensagens são um exercício de poder, de controle. E a prova disso é que o amoroso e atencioso narcisista reage com mágoa e acusações caso a pessoa ignore suas mensagens ou peça para restringi-las de alguma forma.

Flores, bombons, cartões, fotografias e visitas inesperadas com convites irrecusáveis para um jantar, um passeio, uma noitada ou um show também fazem parte do arsenal. À pessoa enlevada por ser alvo de tanta atenção, não passa pela cabeça que esses não são gestos espontâneos, mas movimentos táticos deliberadamente planejados para minar qualquer dúvida ou suspeita ao mesmo tempo que colocam o narcisista na posição de "credor" da relação - uma continha que ele (ou ela) mantém metodicamente para cobrança posterior.

Nas longas conversas íntimas que os casais costumam ter no começo dos relacionamentos, o narcisista fala muito de suas conquistas, seus bens, seu status, seus amigos e seu estilo de vida, planos, sonhos e projetos. Seu passado e família são perfeitamente felizes e resolvidos, mesmo que ao conhecê-los se tenha uma impressão completamente diferente. Na eventualidade de relatar algum momento emocionalmente carregado, o narcisista sempre se retrata como uma vítima heroica de algum engôdo ou conspiração.

Esta primeira fase da relação com um narcisista é tudo que se lê na literatura romântica sobre as "almas gêmeas": a intimidade se estabelece rapidamente com o narcisista ocupando o centro da vida da pessoa em questão de poucas semanas. As emoções são intensas, os sentimentos exacerbados e as brigas costumam ser tão épicas quanto as reconciliações. É o famigerado "entre tapas e beijos": quando tudo está bem é o paraíso, mas "qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d'água".

O love bombing via de regra coincide com a transição da desvalorização para o descarte da relação na qual o narcisista já se achava envolvido no momento que reconheceu na nova pessoa um alvo potencial para subtrair atenção, recursos, favores e, de quebra, prover alguma vantagem competitiva nas "negociações" com o desesperado parceiro da relação "oficial", e o desfecho do triângulo amoroso por ele criado vai depender do quanto parceiro 1 e parceiro 2 estiverem dispostos a ceder e conceder. Em muitos relatos que li, a situação se arrastou por décadas, e em vários casos só se resolveu pela introdução de uma quarta pessoa no drama - ou pelo próprio narcisista ou por alguma das outras partes.

Quanto mais intenso, dramático e sofrido for esse triângulo para os outros envolvidos, mais o narcisista lutará para mantê-lo, porque o drama alheio por sua causa é a cocaína do narcisista.

Fase 2: Você não me entende, você não entende de nada, você não é nada sem mim

As críticas que já vinham se insinuando na fase do love bombing se tornam mais ácidas e frequentes. Arregaçando as mangas, o narcisista dá mostras de quem é e para que veio: nada é suficientemente bom, nada está à sua altura, não era nada disso que ele queria. Por mais que se esforce, o parceiro está sempre aquém das expectativas. Sua família é medíocre ou desajustada, seus gostos banais, seus amigos interesseiros, seu trabalho insignificante ou mal-remunerado... pouco a pouco todo e qualquer interesse do parceiro que não envolva o narcisista é insignificante e não merece nenhuma prioridade.

Ao mesmo tempo que deprecia as mesmas qualidades que pareceram atraí-lo em primeiro lugar, o narcisista passa a ostentá-las como se fossem parte da sua própria natureza: se o parceiro é uma pessoa extrovertida, é assim que o narcisista começa a se comportar mesmo tendo se mostrado retraído até então. Se o parceiro é uma pessoa generosa e preocupada com causas sociais, o narcisista passará a se comportar como um paladino nessas questões. E sempre será mais, maior e melhor do que o parceiro. E o que quer que não consiga superar, o narcisista desvalorizará não poupando esforços em demonstrar ao parceiro como suas habilidades ou talentos são limitadas, o que faz tanto através de comparações como sugerindo objetivos inatingíveis sem uma considerável curva de aprendizado - para logo depois criticá-lo por buscar dar passos maiores que suas pernas.

Tudo isso já havia sido insinuado durante o love bombing, mas de maneira sutil ou jocosa, através de piadinhas comparações ou comentários en passant que o parceiro preferiu ignorar para não criar caso. Porque desde o primeiro instante, o narcisista se empenhou em minar os limites do parceiro ao mesmo tempo que fixava e avançava os seus.

Você acha que tem pernas para usar esse vestido curto?, perguntará "inocentemente" o narcisista para assim que se virem na rua passar a olhar ostensivamente as pernas de toda e qualquer outra mulher de mini-saia. A cobrança do livro-caixa do relacionamento que ele vinha mantendo desde o primeiro instante começa a ser cobrada: eu desperdicei trezentos Reais naquele jantar só porque você insistiu naquele restaurante!, argumentará para não se comprometer com o pagamento do aluguel. Os exemplos dessa lógica do absurdo são tantos quantos narcisistas existem no planeta: o importante é observar como a balança pende sempre para o lado do narcisista a despeito de todos os esforços do parceiro: na eventualidade de lavar um prato, o narcisista passará a agir como se fosse a única pessoa que faz isso diariamente.

Se o parceiro teve a sensatez e bom senso de manter o vínculo com amigos e família bem como uma fonte de renda própria e independente do narcisista, todos serão alvo de críticas e desvalorização constantes. Muitas pessoas acabam abandonando amigos, família e emprego na vã tentativa de trazer de volta o paraíso do love bombing. Mas a solução é temporária, porque o narcisista logo passará a criticá-la justamente por ter abandonado amigos e familiares e/ou largado o emprego de que ambos tanto precisavam para sobreviver.

Mais uma vez, as circunstâncias variam, mas a sensação de estar no mato sem cachorro com o narcisista é igual para todas as "vítimas". E quanto mais se esforçarem para manter a relação, menos o narcisista se empenhará e mais distante se tornará. A essa altura, as saídas com os amigos e os compromissos se tornarão frequentes, ao mesmo tempo que o narcisista passará longas horas online. O foco obsessivo que parecia ter no parceiro agora se distribui entre uma enormidade de novos "contatos": insatisfeito com o parceiro menos que perfeito, o narcisista começa a buscar alternativas e seu círculo social se expande em proporção geométrica ao encolhimento do círculo do parceiro que já não tem ânimo nem para visitar os próprios familiares e se o faz, o narcisista não o acompanha ou se o acompanha o faz contrariado mostrando-se distante ou abertamente descortês. Isso acontece sempre que o narcisista falha em aliciar amigos e/ou familiares para com eles tecer a rede de intrigas que usa para afastar o parceiro das pessoas que lhe provêm suporte emocional.

Se o narcisista for bem sucedido em aliciar flying monkeys (macacos voadores - a expressão vem do filme O Mágico de Oz), laços e relações construídos ao longo de vidas inteiras correm o risco de ser irreparavelmente rompidos, com ressentimentos antigos que se julgavam resolvidos sendo reavivados e levados ao ponto de ebulição.

Esse purgatório se estende até o narcisista finalmente encontrar um reserva que corresponda a suas expectativas, tendo já testado e comprovado a flexibilidade de limites de que precisa para o clímax da relação que mantém com o parceiro-titular. Porque o clímax para o narcisista não é a descoberta do outro, mas a sua destruição.

Fase 3: eu nunca sequer gostei de você

O descarte vem como uma tempestade de verão: o dia amanhece com céu de brigadeiro e de uma hora para outra, a tempestade desaba: existe aquela outra pessoa com quem o narcisista já está envolvido até o pescoço. Ele até pode alegar em sua defesa que foi uma noite só ou que nem fez sexo com ela, mas é mentira: a "relação complicada" corre a pleno vapor com o narcisista prometendo mundos e fundos à terceira parte. O parceiro até pode se julgar esperto por ter "descoberto" sobre o affair, mas isso não poderia estar mais longe da verdade, porque assim como o serial killer planeja e executa minuciosamente cada homicídio como num ritual, o narcisista planeja e executa o descarte de forma que o parceiro desconfie e descubra a traição onde e quando ele decidiu. O celular (sempre bloqueado) que o acompanhava até no banheiro não foi "esquecido" na mesa da sala aberto justamente na troca de mensagens entre ele e seu affair, mas deixado de propósito para o parceiro ler, descobrir tudo e ainda ser acusado de invadir a privacidade ou não confiar no narcisista.

Confrontado, o narcisista não só não admitirá responsabilidade alguma sobre o ocorrido como tentará reverter a culpa, e qualquer argumento servirá nesse momento, e quanto mais absurdo, descabido ou despropositado melhor, já que o objetivo é desviar o foco da discussão, passando de acusado a acusador. Não raro, o narcisista acusará o outro por palavras, atitudes ou comportamentos que ele próprio costuma apresentar. Tentar ater-se à questão em foco é extenuante, demanda uma vontade férrea e uma alta imunidade a abusos verbais. E mesmo no fim de tudo isso, terá se voltado à estaca zero, porque o narcisista não discute para buscar um ponto em comum, mas sim para vencer, prometendo se necessário o que não pretende absolutamente cumprir.

Como o serial killer, narcisista tentará estender o máximo a carga emocional desta fase, e dependendo da conivência dos parceiros titular e suplente, pode chegar a estendê-lo por anos a fio, envolvendo a todos numa teia de ciúmes, ressentimentos e intrigas a fim de manter os parceiros titular e suplente competindo constantemente por sua atenção. Intrigas e mentiras deslavadas não são poupadas e se amigos e familiares se envolverem nesse caos, tanto melhor.

Aliás, no que tange a amigos e familiares, ainda antes de definir um novo suplente, o narcisista já vinha cuidando de minar a reputação e credibilidade do parceiro titular, queixando-se e inventando histórias mirabolantes para amigos e familiares, e assim preparando o terreno para que não só não encontre apoio como seja criticado e ridicularizado por esses no auge do descarte, que é quando as pessoas costumam perder a cabeça, tomando atitudes irracionais rodando a baiana, quebrando coisas ou publicando insinuações quando não insultos diretos nas redes sociais.

Li relatos de primeira mão em fóruns de ajuda mútua que se alguém me contasse, jamais acreditaria. São dezenas de indivíduos presos em relações altamente tóxicas, em círculos viciosos com direito a chantagens e baixarias inomináveis que parecem incapazes de romper por iniciativa própria. Por mais que se apontem alternativas viáveis, essas pessoas parecem não conseguir reunir a motivação necessária para romper voluntariamente o ciclo do abuso e reconstruir suas vidas longe do narcisista.

Para estender o máximo possível essa etapa, mesmo depois do parceiro ter deixado bem claro que considera encerrada a relação e não tem o menor interesse em reatá-la, o narcisista usa do hoovering (pairar, em inglês), o bom e velho "sentar mosca": emails, mensagens, "encontros inesperados" de forma mais ou menos insidiosa, sempre dependendo da qualidade e quantidade de favores objetivos  subjetivos que tenciona subtrair de ambos os lados, porque a essa altura o suplente já ocupa a tão esperada titularidade e enquanto ele celebra o "grande amor" com amigos e familiares nas redes sociais, o narcisista manobra secretamente para manter o ex-parceiro no banco de reservas, para alguma eventualidade, ao mesmo tempo que cuida de plantar dúvidas quanto à sua reputação e intenções, para desacreditá-lo caso canse da brincadeira e resolva abrir a boca.

Não existe prazo de validade para a condição de "reserva técnica" na vida de um narcisista, e sempre que julgar oportuno ou necessário, ele buscará uma brecha para voltar a se insinuar na vida da pessoa.

É por isso que tendo identificado um narcisista em sua vida - com as devidas diferenças, esses três estágios também se aplicam a amizades e relações de trabalho -, o melhor a fazer é afastar-se e bater a porta sem deixar nenhuma fresta. Há duas "técnicas" para isso, que descreverei em outro post: o no contact (nenhum contato), que consiste basicamente em erradicar o narcisista e todas as suas ramificações de sua vida, e o grey rock (pedra cinzenta), que precisa ser aprendido e posto em prática quando não é possível afastá-lo completamente.

Seguir sendo "amigo" de um narcisista depois de terminar a relação (seja de amorosa, de amizade ou trabalho) é tornar-se um voluntário na linha de frente de conflitos, dramas e sofrimentos não só dispensáveis como contraproducentes. Se você foi vitimado por um narcisista é porque não tem em si a malícia necessária para enfrentá-lo num terreno que ele conhece como a palma da sua mão e até que se fortaleça e atinja a imunidade seguirá sendo um alvo fácil não só para ele, como para outros narcisistas.

E você só vai chegar a isso se ao invés de dedicar seu tempo e energias a expor ou vingar-se do narcisista, concentrar seu foco e atenção nas fraquezas que o tornaram suscetível a se envolver com alguém tão perturbado, encarando uma a uma e empenhando-se em corrigi-las, fortalecer sua auto-estima e, acima de tudo, aprender a se fazer feliz sem pedir licença a ninguém.

O narcisista nunca vai mudar e vai seguir incólume pulando de relação em relação. É assim que é e sempre vai ser, e caso tenha dúvidas, lembre como sua relação parecia perfeita aos olhos do mundo. Mas você pode mudar, você pode evoluir e fortalecer-se emocionalmente para encontrar a paz, o amor e a harmonia que merece nesta vida.

3 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE III: DE ONDE VEM?


Antes que essa sequência de posts se transforme num libelo contra os narcisistas, acho importante nos debruçarmos sobre as causas, porque ninguém "se torna" narcisista por opção. Mais do que uma escolha pessoal, o narcisismo é uma estratégia de sobrevivência emocional num ambiente marcado pela ausência de acolhimento, aceitação, valorização, estimulação, aconchego... enfim, do amor e carinho autênticos que deveriam pautar as relações familiares.

É preciso entender que todos nós viemos ao mundo sentindo (já que o pensamento anterior à palavra é puramente emocional) como o centro de um universo habitado por criaturas que só aos poucos vamos identificando como seres independentes de nós e dotados de emoções autônomas que nem sempre nos envolvem ou dizem respeito. Num ambiente acolhedor, os adultos responsáveis cuidam para que suas próprias emoções não se reflitam na maneira como interagem com as crianças como, por exemplo, não gritar com o bebê que está chorando de fome e com as fraldas recheadas porque estamos irritados com outra pessoa. Isso até pode acontecer em algum momento, mas jamais pode ser a regra.

O caso é que em muitas famílias a regra é exatamente essa. Muitos adultos responsáveis não atingiram ainda a maturidade para não projetar nas crianças as próprias emoções. E muitos só atingem esse discernimento na terceira idade, se tanto - daí a importância da presença dos avós na vida das crianças, mas isso é assunto para outro post.

Pior: tendo perdido as estribeiras, se arrependem e, movidos pela culpa, tentam compensar a má conduta com presentes ou indulgência excessiva exatamente onde a indulgência não cabe, como por exemplo, passando a mão pela cabeça e justificando quando a criança agride um colega na escolinha.

Essa falta de consciência, esse não estar presente em todos os momentos da relação com os filhos constitui abandono emocional. Falamos muito do abandono físico das crianças, o que causa grande culpa aos pais e cuidadores que trabalham fora de casa, mas o abandono emocional é tão grave, se não pior, porque o cuidador emocionalmente ausente não permite que se formem vínculos autênticos entre os dois e seu distanciamento é sentido pela criança como uma negação de sua existência e relevância como ser humano. Nesse sentido, é muito melhor estar emocionalmente presente por poucas horas no dia da criança do que fisicamente presente, mas emocionalmente ausente o tempo todo.

Assim como todo acidente aéreo resulta de uma concorrência de causas, um narcisista não se desenvolve unicamente como defesa ao abandono emocional, e vários outros fatores precisam estar presentes, como a humilhação, o desdém, a crítica excessiva, a punição severa quando a criança falha em se moldar às expectativas ou à mera conveniência do adulto, ainda mais quando a reação do adulto se dirige à criança como pessoa, mais do que ao seu comportamento: "criança má", "criança estúpida", "criança chata"... o mínimo que se espera de um ser humano adulto e consciente é saber distinguir entre o comportamento e a pessoa da criança e buscar entender o porquê de certos comportamentos para ajudá-la a corrigi-los tendo em mente o bem-estar e a integridade física e emocional da criança muito mais do que a nossa conveniência. Quem não quer limpar cocô, xixi, vômitos e comida espalhada no chão, que não tenha filhos, porque isso tudo vem com o pacote.

Grande parte dos narcisistas foi criada por adultos que agiram como se estivessem criando bonecas sempre limpas e bem arrumadas para exibição, nem que para isso seja preciso obliterar a sua identidade. Uma excessiva atenção é dada à maneira como a criança se mostra e comporta perante amigos, familiares e sociedade ao mesmo tempo que o aconchego e aceitação lhe são negados na intimidade. São famílias com duas caras, que mostram ao mundo o Dr. Jeckyl enquanto dentro de casa quem manda é o Mr. Hyde. Todos temos um pouco de Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, mas há um limite, um equilíbrio. É claro que esperamos que nossas crianças se mostrem limpas, simpáticas e corteses, mas via de regra reagimos proporcionalmente aos deslizes e visando corrigir o comportamento sem despejar um balde de veneno pelos ouvidos da criança.

São adultos que também desconhecem o perdão, criando ambientes onde ressentimentos se cristalizam em rancores e mágoas remoídos no silêncio de uma cordialidade expressa ritualisticamente por palavras e gestos estereotipados, emergindo violentamente à menor "quebra de protocolo". Esses adultos discutem, pois são incapazes de dialogar, e ao invés de buscar os pontos em comum visando a harmonia, seguem pela vida tentando impor a ferro e fogo seus desejos, visões e vontades usando de ofensas, críticas e sarcasmo, e formando alianças baseadas em intrigas e fofocas.

À medida que se desenvolve, a criança vai se moldando e adaptando para sobreviver num campo minado onde nada é gratuito ou espontâneo, aprendendo desde cedo o valor de troca de uma birra, de um grito, de uma porta batendo, uma piadinha, uma mentira ou um tapa na cara; bem como de um sorriso ou elogio, de um pequeno favor ou simulação de carinho.

Por desconfiar das verdadeiras intenções dos que a cercam, aprende desde muito cedo a interpretar as expressões faciais e identificar os pontos fracos das outras pessoas, fazendo-se invisível literal ou figurativamente para evitar ser o alvo da próxima erupção do vulcão que sente tremer constantemente sob seus pés.

A maneira como o narcisista se relaciona com as pessoas é reflexo do que aprendeu desde cedo com seus pais e familiares mais próximos. E ao longo da vida adulta, a qualquer pessoa que ingresse em sua intimidade, o narcisista atribuirá o papel de um dos integrantes da sua constelação familiar original, punindo-o sempre que arriscar uma improvisação.

Resta o porquê do narcisista explorar as pessoas, o porquê de ser incapaz de ajustar-se à reciprocidade nas relações em todas as instâncias, buscando sempre uma posição de vantagem, dando o mínimo e esperando o máximo, querendo que os outros façam por ele o que é incapaz de oferecer; ao mesmo tempo que se queixa constantemente sentindo-se explorado e injustiçado, ou alvo de críticas e ataques gratuitos. Essa distorção no foco da realidade vem de longa data e por isso é impossível fazer com que o narcisista veja as coisas com objetividade, pois sempre entende que está sendo usado, ludibriado, ridicularizado, enganado, desvalorizado e desprezado.

Não podemos culpá-lo por ser quem é. Mas tampouco podemos passar a mão pela cabeça. O melhor que podemos fazer é reconhecê-los pelo que são com respeito, compaixão e distância para não sermos prejudicados.