9 de set. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE XI: HOOVERING


Narcisistas são, acima e antes de qualquer coisa obsessivamente controladores.

Como são incapazes de se relacionar com os outros com honestidade e sinceridade, muito de sua energia mental é dispendida divisando esquemas para evitar que suas más ações venham ao conhecimento dos alvos atuais, e a única maneira de garantir que isso não aconteça é monitorando e, preferencialmente, controlando não só as ações mas a própria imagem das pessoas de quem abusou no passado ao mesmo tempo que cuidam de minar a credibilidade de qualquer um que represente uma ameaça à falsa personalidade que desfilam pelo mundo.

600 anos antes de Cristo, lá na China Lao Tsé já ensinava: mantenha seus amigos sempre perto e os inimigos mais perto ainda. Ninguém aplica tanto e tão bem esse ensinamento como o narcisista, simplesmente porque para ele todos são seus inimigos - e eles não deixam de estar certos, porque a confiança é a base de tudo para um ser humano e costumamos reagir (às vezes violentamente) ao menor indício de estarmos sendo traídos ou abusados em nossa confiança; e como narcisistas sobrevivem de se aproveitar da confiança alheia, seguem pela vida a fora sendo rechaçados, escorraçados, insultados e por aí a fora.

Quanto maior o tempo e grau de intimidade de uma relação, maior o investimento de confiança que fazemos nela. E poucas coisas são mais enfurecedoras do que descobrir que aquela pessoa em quem você investiu tanta confiança era uma farsa. Muita gente perde a cabeça e é capaz de reagir com extrema violência nessas circunstâncias, partindo para a agressão e a vingança, e o hoovering (que e inglês significa "pairar) é o escudo que o narcisista usa para se proteger dessa possibilidade.

A expressão foi cunhada por psicólogos para descrever o assédio praticado pelos narcisistas após a exposição (com familiares, amigos, colegas e ex-parceiros afetivos) para "fazer as pazes" e assim "voltar" a "fazer parte" das suas vidas. O hoovering serve primeiramente para tentar induzir a pessoa a duvidar das próprias percepções. Algo tipo: veja, sou eu que estou aqui... Eu, aquela pessoa boa e maravilhosa que sempre esteve ao seu lado... Aquele outro que lhe traiu, que insultou e falou coisas terríveis não era eu... Você entendeu mal... Você é que não viu... É que suas acusações causaram um sofrimento tão terrível para mim... Mas era tudo da boca para fora... e por aí a fora...

Nesse estágio, o narcisista se esforça para demonstrar suas "boas qualidades" resgatando a falsa personalidade que apresentou anteriormente ao descarte - e não se iluda: o descarte não tem volta.

Esse reaparecimento pode acontecer dias, semanas, meses ou mesmo anos depois do descarte; o fator determinante é a necessidade do narcisista - nunca, jamais a sua. Não é "saudade", não é que ele tenha "mudado" e muito menos "reconhecido seus erros" e decidido "recomeçar" - pelo menos não no sentido que entendemos: tudo que ele quer recomeçar é a dinâmica de sugar até a medula da sua vítima garantindo livre e repetido acesso a alguma vantagem afetiva, financeira, profissional, material, etc...

Além disso, a proximidade permite ao narcisista antecipar os movimentos e reações do alvo ao mesmo tempo que reinsere na vida dele todo o caos de que sempre se faz acompanhar, juntamente com a entouraje de flying monkeys, que serve o duplo propósito de aplaudir seus movimentos e divertir-se às custas da vítima.

Portanto, quando o narcisista reaparecer à sua porta mesmo depois de anos todo arrependido e fazendo juras de amor, não acredite: ele não só não está absolutamente arrependido como o vê como um inimigo e seu único propósito é ensinar uma lição da forma mais cruel e vexatória possível e ele cuidará que todos os olhares estejam em você - particularmente os olhares daqueles que lhe forem mais íntimos e caros - quando o expuser como uma pessoa vil, falsa e desprezível ao mesmo tempo que cuida de dissipar seus recursos materiais, destruir sua carreira, sua auto-estima, ou mesmo sua vontade ou razão de viver.

Sim, eles são doentes a esse ponto e se aproveitam da dificuldade que temos em admitir quando erramos em avaliar o caráter de outro ser humano. É que aceitar essa possibilidade implica admitir que podemos nos enganar radical e estruturalmente ao estimar os outros, e esse pensamento nos leva a duvidar da nossa própria capacidade de ser e estar em sociedade, pois se a base de tudo é a confiança e não sabemos distinguir uma pessoa confiável de uma não confiável, o que isso diz de nós? Que não temos capacidade de construir um nicho seguro para nós mesmos: e isso é desastroso! Essa constatação é terrivelmente perturbadora e se não tomarmos cuidado, se não pararmos para revisar nossos critérios e, principalmente, observarmos como o tempo todo a nossa intuição esteve tentando avisar sobre aquela pessoa e, principalmente, as razões pelas quais decidimos ignorar esses avisos; arriscamos cair num ciclo vicioso de culpa, depressão e desconfiança.

Mas o foco deve ser a lição. E a lição é: ouvir a nossa intuição. E na hora, no instante que ela está soando o alarme. É nela e em nada nem ninguém mais que devemos sempre depositar nossa maior confiança. E intuição não tem nada de abstrato ou esotérico, mas sim uma função mais elevada e altamente especializada dos nossos sentidos para detectar predadores entre os seres humanos, porque precisamos dos outros (e e eles de nós) para sobreviver: que razão tem um ser humano para correr no socorro de outro senão a confiança de que na eventualidade de estar ele numa situação de perigo outro ser humano faça o mesmo. Sem confiarmos uns nos outros, não teríamos sequer chegado às cavernas, não teríamos sequer chegado a formar tribos.

O aspecto mais insidioso, mais cruel do hoovering é que ele costuma acontecer quando todas essas dúvidas nos consumem, e nem é tanto porque o narcisista tenha o superpoder de detectar esse momento, mas porque o sofrimento é tão insuportável, que muitas vítimas acabam permitindo que ele retorne às suas vidas na (vã) esperança que isso vá desfazer o mal-entendido, matar o dragão da dúvida e restaurar a "normalidade" sem que elas precisem fazer uma séria e profunda reavaliação pessoal. Só que, como bem sabemos (ou deveríamos já ter aprendido) esse dragão é o próprio narcisista, e essa volta triunfal (para o narcisista) é para arrastá-las ainda mais fundo no inferno.

Não tenha um pingo, uma sombra de dúvida sobre isso, porque para o narcisista, você não passa de um fantoche que tem a obrigação de adorá-lo e satisfazer todas as suas vontades mesmo que isso implique a morte em vida para você - ele é indiferente, porque do ponto de vista do narcisista, você não existe, nunca existiu e jamais virá a existir como um indivíduo. Para o narcisista você não tem vontade, desejos ou anseios próprios: é só (mais) um casaco que ele tira do armário quando precisa, usa como e quando quer, então guarda de volta para quando precisar.

Se não puder controlá-lo diretamente, o narcisista procurará infiltrar um "espião" no seu círculo e não terá o menor problema em criar um perfil falso para segui-lo nas redes sociais. Então, não hesite em romper com toda e qualquer pessoa que suspeite estar mais próxima a ele do que a você e desconfie de qualquer pessoa amiga dele que pareça interessada em você de uma hora para a outra. Narcisistas são manipuladores e todo o manipulador triangula, ou seja, insere terceiros nas relações sejam amorosas, familiares ou de amizade. Sabe aquele amigo que anda, vira e mexe acaba comentando algo ruim sobre outra pessoa? Ele é um manipulador. O que ele na verdade está tentando dizer é "veja como eu sou melhor do que fulano ou beltrano por causa disso, disso e daquilo". Simples assim. Gente séria e honesta não precisa rebaixar ninguém para se sentir superior. De mais a mais, quem garante que essa pessoa mais adiante irá falar mal de você?

Enfim... se não tiver acesso direto à sua vida, o narcisista buscará alguém que faça o serviço para ele. Eles geralmente conseguem isso se aproximando dessa pessoa e fingindo estar muito preocupado com você: "oh, estou tão preocupado com o fulano! Ele não atende o telefone, não responde meus e-mails... tenho medo que esteja muito deprimido e acaba fazendo alguma bobagem"... ou qualquer coisa do gênero. Você entende o quadro, afinal, quantas vezes isso já não aconteceu com a gente, não é? A preocupação com uma pessoa que se afasta é uma reação absolutamente natural de quem de fato se importa com ela e manipuladores se aproveitam disso não só para extrair as informações que buscam como para contar uns pontos extras com a gente, porque ao ouvir coisas assim, tendemos a pensar "oh, veja como ele é bonzinho: está tão preocupado...!" E aí, para parecer igualmente boazinha e preocupada, a pessoa corre para o telefone para saber como está o tal fulano, então volta correndo para contar, porque assim, além de parecer boazinha e preocupada ela parece importante também. Isso em si não tem nada de errado: primatas se relacionam na base do toma-lá dá cá, só que ao invés de trocarmos bananas, trocamos favores e pessoas manipuladoras desenvolveram a habilidade de sair sempre lucrando nessas trocas, entende? A diferença entre o manipulador e o narcisista é que o manipulador não quer lhe destruir no processo, apenas levar alguma vantagem e está bem consciente que existe um limite, uma hora de parar e dar algo em troca e o narcisista pode até saber disso, mas como se julga acima desse limite.

E já que estou tocando neste assunto, fica uma dica que vai lhe poupar muita dor de cabeça: desenvolva o sadio hábito de primeiro se peguntar porquê essa pessoa que era tão íntima da outra não se dá ela própria o trabalho de falar com o tal fulano, já que está tão preocupada. E depois disso, entenda que o que quer que tenha acontecido entre elas não é problema seu: é delas. E então, desvencilhe-se da incumbência que essa pessoa está tentando lançar sobre você dizendo algo como: "oh, veja só, que pena! Já que está tão preocupado, você bem que podia procurá-la, não é?". E fim. Ponto final. Resista ao impulso de aumentar seu escore junto a manipuladores, porque é justamente desse ladinho bem primitivo da natureza humana que eles se aproveitam mais.

"Espiões" ou perfis falsos servem para o narcisista monitorar os seus passos e manter-se informado do seu estado emocional. Nunca esqueça que o narcisista o estudou muito bem e o conhece talvez melhor do que você mesmo, e ele sempre vai usar esse conhecimento contra você para determinar o melhor momento de reaparecer como o herói, e se você vacilar, ele (ou ela) vai entrar novamente em sua vida para mais uma sessão de abusos, porque ao mesmo tempo que acaricia as feridas do seu ego com pretextos e promessas falsas, mas esse mar de rosas terá uma duração ainda mais curta do que o love bombing inicial, porque - e nunca é demais enfatizar - o narcisista jamais volta para "reatar" qualquer vínculo que tenha tido com você: ele volta para se vingar, para extrair até a última gota dos seus recursos materiais e emocionais, enlameá-lo com toda a sorte de situações vexatórias, calúnias e difamações e finalmente expô-lo sujo e humilhado perante a maior plateia que puder reunir. Este é o objetivo final do narcisista ao se relacionar com qualquer pessoa, porque por alguma distorção profunda na personalidade, o único prazer que o narcisista consegue sentir nesta vida é esse momento de triunfo sobre outro ser humano e ele vem na proporção da humilhação a que  submete o outro.

Se você não tiver trancado bem as portas e janelas da sua vida, no instante que perceber algum movimento em sua vida, o narcisista cuidará de reaparecer. Por isso é que depois do rompimento, o afastamento físico e bloqueio total de qualquer forma ou possibilidade de acesso à sua vida íntima é fundamental.

23 de jul. de 2017

CHEGA


Vou começar dizendo uma coisa. Você não vai gostar de ouvir, mas é a verdade: o que você permitir, vai continuar. E digo mais: vai seguir piorando.

Um narcisista que tive o (des)prazer de conhecer gostava muito de citar (e aplicar, é claro) a "politica do beliscão" para determinar o quanto podia tirar dos outros até precisar dar alguma coisa em troca.

A "política do beliscão" funciona assim: você belisca e vai apertando até a pessoa gritar. Aí você solta, mas só um pouquinho. Se a pessoa não meter a mão na sua cara e o mandar às favas, você aperta de novo desta vez com mais força que antes. E segue repetindo e apertando cada vez mais forte até não ter mais nada que espremer do infeliz.

Psicopatas, sociopatas e narcisistas - e governos, empresas ou instituições também se comportam como tais - tratam os outros exatamente desta maneira.

O que está acontecendo neste país é exatamente isso.

Nossos "representantes" não dão a mínima para nada nem ninguém além dos seus próprios interesses. Não se importam nem com a crescente legião de mendigos morrendo de fome e frio pelas ruas deste país. Pior: fazem piadinhas cruéis, comparando-os a zumbis.

E se você acha que eles se importam com a classe média, pode ir tirando o cavalinho da chuva, porque se eles têm nojo de pobre, por nós o que sentem é desprezo e querem nos esmagar como a uma barata.

É que a gente da classe média tem essa mania de não mendigar, de não implorar pelos favores dessa gente. Não. A gente tem amor-próprio, tem orgulho de ser quem é e estar onde chegou; a gente se orgulha porque ralou para chegar aonde está, e a gente quer que os outros cheguem também. A gente quer que os pobres comam todos os dias como nós, que tenham suas casas, que seus filhos vão à escola, que sonhem e façam seus sonhos realidade. A gente é gente e gosta de gente, gosta de bicho, gosta de natureza. A gente sabe que pra ser feliz é preciso que os outros também estejam felizes, saudáveis, alimentados e agasalhados; então a gente cuida e é cuidado, porque sabe que gente precisa de gente.

Sim, somos muito diferentes uns dos outros, porque a nossa classe começa no primeiro título de propriedade (seja um barraco, um JK ou uma cobertura) e vai até a casa de praia ou sítio, o terceiro ou quarto carro na garagem mais o turismo pelo mundo a fora.

A gente começa na humilde costureira que passa os dias debruçada na sua máquina e vai até a dona de butique que amanhece em Porto Alegre, almoça em São Paulo e janta no Ceará comprando para a sua loja. A gente começa no balconista da livraria e vai até o professor de Literatura com pós-doutorado que vive palestrando no exterior.

Somos muitos, somos diferentes e somos a maioria. Somos nós que movimentamos essa engenhoca toda e tudo que precisamos é dizer CHEGA, para que esse mundinho dos psicopatas deixe de existir.

Somos quem mais investe tempo, criatividade e recursos em proteger o ambiente, melhorar a educação, promover a cultura, a saúde, o livre comércio, as novas tecnologias... e também somos nós que nos organizamos para minimizar os impactos horrorosos das ações dos nossos próprios governos sobre os menos privilegiados.

São os nossos impostos, não os dos milionários e muito menos os das mega-empresas que sustentam o governo - até porque essas mega-empresas além de receberem bilhões dos impostos que nós pagamos em "incentivos" e "financiamentos", ainda se dão ao desplante de sonegar.

As grandes empresas deste país devem mais de um trilhão de Reais em impostos, e a gente se apavora só de cair na malha-fina do imposto de renda...!

Somos nós que quando precisamos alguma coisa, batalhamos e vamos atrás porque nada vem de mão beijada. A gente sabe, a gente aprendeu desde criança o valor do trabalho, do empenho, da honestidade, da dedicação e, acima de tudo, da cooperação.

Mas os psicopatas querem que esqueçamos da cooperação. Eles querem nos ver brigando por ideologia, gênero, religião, raça, futebol, celebridade, marca, carro e todo o tipo de cenoura que penduram à frente dos nossos narizes para nos distrair. E divididos assim, deixamos de ver que o inimigo é um só e de todos nós.

Porque ideologia, gênero, religião, raça, futebol, celebridade, marca, carro... quanto mais e mais diferentes, melhor: o motor da evolução é a diversidade! Diversidade é abundância, é riqueza, é beleza: a abelha não perde um segundo de vida querendo forçar o beija-flor a fazer mel. Ainda assim, os dois visitam as mesmas flores e se alternam para extrair o néctar ao invés de competir.

Por que então nos deixamos influenciar por todas essas "polêmicas"? Já parou para pensar que elas são criadas e insufladas na mídia e pela mídia justamente para acirrar os ânimos, para nos dividir? Quem tem a ganhar com a gente se xingando de coxinha, de mortadela, de bolsomito?

Eles. Nossa divisão só serve a eles, porque nós precisamos uns dos outros, mas eles só precisam que sigamos distraídos culpando uns aos outros.

Então, CHEGA de bateção de boca também: a gente está aqui para viver, amar, criar e ser feliz, não pra morrer à míngua coberto de carrapato.

14 de abr. de 2017

GENTE INGRATA


O ingrato entra na vida da gente se fazendo de grande coisa, com o nariz empinado e logo começa a revirar tudo, apontar defeitos e criticar e mostrar tudo o que falta, tudo que é pouco ou precário, onde, como e porquê precisamos "melhorar".

A essa altura, era pra gente dizer: "espera aí: isso aí que você está pisoteando é a minha vida, minhas conquistas, minha família, o meu mundo. Mas a gente não diz, porque há um fundo de verdade nos defeitos que o insatisfeito apontou, afinal, a gente sempre poderia ser e estar melhor, a vida sempre pode melhorar, né?

Então a gente dá um suspiro, arregaça as mangas, pega o balde, o rodo, o espanador e começa a faxina sem se perguntar o que o insatisfeito pretende para si com aquilo tudo. E é aí que cometemos o primeiro erro, porque imaginamos que, como nós, o ingrato queira o melhor para as pessoas de quem gosta sem que isso necessariamente represente algum benefício para si mesmos. Só que isso não é verdade, porque o ingrato não quer o que é melhor para nós: ele quer o que julga melhor para si mesmo. Ele quer que mudemos as nossas vidas e até quem somos, como nos vestimos e nos comportamos para provermos o que ele precisa para se sentir bem consigo mesmo, sem precisar um esforço significativo de crescimento e/ou adaptação para compartilhar a vida com a gente.

E mais: via de regra, o ingrato dá o seu palpite esperando que o cumpramos como soldados mostrando-se decepcionado e criticando se não seguimos ao pé da letra suas instruções. E sempre tem uma desculpa esfarrapada para nos deixar trabalhando sozinhos. Ainda assim, enquanto fazemos todo o trabalho pesado, o ingrato se põe no papel de supervisor, dando palpites e criticando os mínimos detalhes das nossas ações: nada é bom o suficiente, e ele com certeza teria feito melhor - só que não faz. E se fizer uma coisinha que seja, como levar o lixo para a rua, o fará de má vontade ou fará parecer um grande gesto ou sacrifício.

A conta nunca fecha quando lidamos com ingratos: a gente dá 100, eles devolvem cinco e agem como tivéssemos ficado devendo mais 50. Porque todo o ingrato é, acima de tudo, um egoísta incapaz de reconhecer os esforços que os outros fazem para satisfazer seus caprichos que parecem nunca acabar.

Gente que se empenha, se questiona e quer avançar na vida é presa fácil dos ingratos porque a inclinação que temos para melhorar e crescer decorre de nossa própria insatisfação. Mas insatisfação e ingratidão são duas coisas bem diferentes. Porque a insatisfação nos motiva a crescer e avançar na vida, e é por isso nem boa nem ruim. É a ingratidão cega as pessoas para a apreciação do quanto avançaram e cresceram, o que acaba resultando em mais insatisfação.

Eu posso concordar com o ingrato que o sofá da sala está velho e já poderia ter sido substituído há um bom tempo, por exemplo, mas eu trabalhei por aquele sofá, eu pensei muito tempo antes decidir por aquele modelo específico, pesquisei preços, elaborei dezenas de cenários alternativos para a sala com decorações e sofás diferentes até me decidir por aquele sofá que hoje está ali, meio desgastado e desbotado. Eu sei o tempo, a energia e o dinheiro que precisarei despender para trocar de sofá. Além disso, eu lembro muito bem como foi o dia que aquele sofá chegou e como me senti recompensada ao me atirar nele pela primeira vez. Esse sofá que o ingrato tanto critica tem um significado para mim, que vai muito além da forma, do estilo, do status ou valor de mercado: ele é uma recompensa que me dei pelo tempo de vida de que abri mão trabalhando para outras pessoas quando poderia estar me divertindo ou perseguindo meus objetivos artísticos ou pessoais.

Quando faz pouco do meu sofá, o ingrato está fazendo pouco disso tudo também. Ele está fazendo pouco das minhas conquistas pessoais, dos meus sentimentos e da minha capacidade de julgar e decidir o que é melhor para mim e de apreciar o ponto onde me encontro no aqui e agora, independente de onde pretendo chegar mais adiante.

Para ele não existem esses checkpoints na vida: se o objetivo do ingrato é uma cobertura no Leblon com vista para o mar, nada que não seja isso é capaz de satisfazê-lo. E quer saber uma coisa? Nem a cobertura no Leblon com vista para o mar irá satisfazê-lo, pois se chegar a conquistá-la, vai achar algum defeito na planta, nas janelas, no condomínio, na vizinhança... qualquer coisa para seguir sendo um ingrato e culpando a vida e os outros pela pouca sorte que tem.

Quando a gente diz "estou feliz onde estou", o ingrato logo nos rotula de "acomodados", imaginando que não temos intenção de seguir avançando e crescendo pela vida, que estamos estagnados, mortos e vazios. O aqui e agora para o ingrato é só a frustração de constatar o quão longe ele está de onde pretende chegar, e a menor diferença entre o aqui e agora e o que ele tinha imaginado vir a ser é vista como um retumbante fracasso.

Conviver com uma pessoa ingrata é sujeitar-se ao veneno constante das críticas e reclamações que primeiro nos arranca o prazer de apreciar onde estamos e tudo por que passamos para chegar até aqui, para aos poucos aniquilar a motivação para seguir em frente, pois se tudo porque passamos não vale nada, para que prosseguir? Para juntar mais nadas que não vão valer nada logo adiante também?

Essa gente negativa também vai minando nossa auto-estima porque é absolutamente incapaz da menor apreciação sincera por nossos esforços, criticando e apontando falhas em todas as iniciativas que tomamos como indivíduos autônomos e não se mostrando satisfeitas nem quando seguimos ao pé da letra as suas ordens e instruções. Se economizamos meses a fio para dar de presente algo que sabemos que o ingrato deseja, ele pode fingir surpresa ao abrir o presente, mas logo logo vai dar um jeito de demonstrar que não era bem aquilo que ele queria e/ou inventar algum motivo para não usufruir.

A convivência com uma pessoa ingrata também nos ensina a nunca esperar um agrado, um incentivo, um elogio que não venha acompanhado de uma crítica para nos magoar e baixar a auto-estima. O ingrato parece sentir prazer em escolher a torta mais engordante para o seu aniversário, cantar parabéns e lembrar sobre seus quilinhos a mais bem en passant, como quem não quer dizer nada.

Sim, como você bem deve ter deduzido a essas alturas, pessoas ingratas são muito invejosas e lá no fundo, guardam um rancor tremendo da nossa capacidade de sentir alegria pelo simples fato de existirmos, de parar para apreciar as flores no caminho entre uma e outra meta em nossas vidas, de não julgar o que recebemos pelo status ou valor aos olhos dos outros, mas pelo significado que tem em nossas vidas. Ao ingrato é impensável alegrar-se pelo par de meias recebido da tia no Natal, porque para ele tudo o que conta é o par de meias em si, não o gesto, a lembrança, o carinho e o trabalho que a tia teve ao sair de casa enfrentando sozinha as ruas e lojas lotadas. A dimensão do outro, sua existência, sentimentos, anseios e temores não existe para o ingrato: tudo que existe é a sua vontade, sempre insatisfeita. Você pode carregar o mundo nas costas pela pessoa ingrata, e ela ainda vai reclamar que é pouco ou nada daquilo que ela esperava, queria ou precisava.

E sabe o que mais? Cedo ou tarde, o ingrato vai apunhalar você pelas costas: a questão não é se, mas quando. E vai fazê-lo sem dó nem piedade, e ainda por cima culpá-lo e fazer pouco do seu sofrimento. Porque é assim que gente ingrata faz, é assim que gente ingrata é.

Aí eu pergunto: vale a pena?

Ninguém no mundo merece que você abra mão de quem é, de onde veio e para onde quer ir, e tenha certeza: pessoas gratas à vida jamais em hipótese alguma cobrarão isso de você.

Pessoas ingratas não valem o tempo que perdemos ouvindo as suas queixas, e muito menos que façamos o menor esforço para agradá-las. A gente pode ajudar, mas ao menor sinal de ingratidão, se afaste e deixe que a pessoa se vire com seus problemas. Se não fizer isso, você vai acabar dedicando mais tempo para resolver os problemas dela do que os seus. E sabe o que o ingrato vai estar fazendo enquanto isso? Arranjando mais problemas para você resolver. Entenda: é uma teia, e se você se deixar prender a coisa fica muito, mas muito complicada. Por isso é que eu digo: ao menor sinal de ingratidão, recue. Recolha as mãos e deixe a pessoa se virar sozinha. Isso não é maldade, é pedagogia.

E nem perca tempo tentando dar o troco depois de ter sofrido alguma ingratidão. Deseje Luz e deixe que se vá. A vida sempre retorna o que a gente dá e tem seu próprio jeito de lidar com gente ingrata, tirando cada vez mais. Isso se chama carma e é tão certo como o sol que nasce a cada dia. E tampouco fique parado na beira da estrada esperando para ver o carma se abater sobre a vida da pessoa ingrata. Vou contar um segredo: o que o carma gosta mesmo é de esperar até que a gente deixe para trás a história toda para então acontecer.

Porque o carma do ingrato não tem nada a ver com a gente. O carma em si tem muito menos a ver com as coisas que nos acontecem do que com a maneira como reagimos quando as coisas acontecem, sejam "boas" ou "ruins" - coloco entre aspas, porque esses julgamentos são relativos: muitas coisas que julgamos "ruins" acabam sendo boas mais adiante, e vice-versa.

O carma da pessoa ingrata é não saber reconhecer quando coisas boas acontecem, e seguir reclamando, futricando e querendo mais. E isso acaba não só tirando as coisas "boas" mas criando coisas "ruins", e aí a pessoa ingrata age impensadamente criando ela própria uma reação em cadeia de coisas "ruins" e se não se corrigir pelo caminho, acaba se dando muito mal na vida.

Mas o mais importante aqui é o seu carma, e ele vai ser determinado pela maneira como você reagir quando sofrer uma ingratidão. É preciso entender antes de mais nada que a ingratidão em si não foi o seu carma: ela é e sempre será o carma que o ingrato criou para si mesmo pelas próprias palavras e ações. Para você, a ingratidão é um teste como que num intervalo entre um carma e outro, e cabe a você e mais ninguém decidir se vai usar esse intervalo para criar um carma bom ou ruim: no caso específico você vai ter que escolher entre crescer e aprender a impor limites aos outros criando um carma "bom", ou criar um carma "ruim" abandonando o próprio caminho de crescimento para se vingar do ingrato. E vai colher futuramente as consequências dessa decisão. Simples assim.

Meu conselho é e sempre será buscar o carma bom e aprender a lição. Aquele sofá velho e desbotado vale muito mais do que a pessoa ingrata que o criticou, porque não foi ganho de mão beijada: você foi lá, batalhou, suou e conquistou aquele sofá e não existe motivo no mundo para se desfazer dele até que você mesmo decida que ele já deu o que tinha que dar. E o presente que deu, os esforços que dispendeu, as mudanças que fez em si e o tempo de vida que dispendeu por um ingrato não foram desperdiçados: você sai da situação mais maduro, mai fortalecido e determinado a valorizar e agradecer ainda mais à vida por tudo que é sólido e verdadeiro ao seu redor. Porque a pessoa ingrata pode ter trazido muitas coisas, mas roubou a verdade de quem você é, do quanto vale como ser humano e do quanto pode acrescentar ao mundo pelo próprio esforço e criatividade.

Gente ingrata também é muito anti-ecológica, se você quer saber. E se a gente entra na jogada deles acaba morrendo por dentro e virando outro consumidor ingrato, voraz e insatisfeito que quando morrer ao invés de lembranças vai deixar um monte de quinquilharias, carnês e prestações para os outros pagarem.

Será que isso é viver?

Não é. E tenho certeza que como eu, você é e pode muito mais por si e pelos outros nesta vida, e como eu, tem muito a agradecer, mesmo e talvez até por causa de tantas ingratidões que sofreu.

22 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE X: STONE WALL


Stone wall (muro de pedra) é uma estratégia de sobrevivência que visa oportunizar às vítimas de abuso o tempo e o espaço pessoal necessários para recuperar-se de situações emocionalmente extenuantes e reassumir o controle sobre a própria existência. E isso só se consegue afastando completamente o abusador do seu dia-a-dia, obstruindo qualquer possível via de acesso físico e virtual.

Parece drástico, mas é absolutamente necessário, particularmente quando se trata de narcisistas, porque eles não só não têm o menor respeito ou consideração pelos limites dos outros, como não assumem responsabilidade por absolutamente nada, sentindo-se mais do que à vontade para entrar e sair da sua vida conforme lhes for conveniente - isso se chama hoovering (pairar).

Em média, são necessários 7 rompimentos para que a vítima de um narcisista finalmente consiga encerrar de vez a relação. O problema é que a cada reconciliação, a "lua de mel" fica mais curta e o abuso mais pervasivo e violento. Isso acontece porque na cabeça do abusador, o seu perdão tem o efeito de um convite para abusar mais. Além disso, a cada vez que você tenta romper a relação, ele se sente humilhado pelo que quer que tenha se obrigado a fazer manter a relação, acumulando rancores e arquitetando vinganças com crescente crueldade. Não é a primeira nem será a última vez que ele passa por isso, então ao primeiro limite que você impuser na relação, ele já colocará seu plano B em ação. Não tenha ilusões: enquanto você ainda comemora o encontro da sua "alma gêmea" ele já está prospectando um parceiro-reserva para qualquer contingência.

A coisa mais importante para ser entendida nesta vida é que você não tem o poder de mudar ninguém além de si mesmo. Ao contrário do que ensinam as novelas, filmes e romances, o amor não é uma força mágica com poderes de transformar a fera numa pessoa normal. Isso se chama vontade e tem que partir da própria pessoa: ela é que precisa fazer todo o esforço e tomar por si só a iniciativa de buscar ajuda profissional e empenhar-se de corpo e alma na própria mudança.

Essa mudança de paradigma é importantíssima, particularmente para as mulheres brasileiras que seguem sendo emocionalmente educadas como se o abuso, os ciúmes, a gritaria, as atitudes extremas e violentas e a manipulação fossem "provas de amor". Assim como boas notícias não vendem jornal, amores saudáveis não dão bons romances, porque seus enredos carecem do tempero que prende o leitor. Mais do que modelos a serem buscados, os relacionamentos descritos nessas obras de ficção devem servir como exemplos dos sintomas de relacionamentos ruins e seus finais felizes vistos muito mais como uma vírgula do que pontos finais, porque encerram o ciclo daquele romance encaminhando para o próximo num crescendo que se não for interrompido a tempo, culminará num thriller de terror.

O amor não "perde a cabeça", não grita, não humilha, não machuca e jamais, em hipótese alguma, agride fisicamente. Amor é, acima de tudo, respeito. Mais do que qualquer outra coisa, o respeito é essencial a todos os relacionamentos. Sem respeito, não há apreciação, sinceridade, confiança e companheirismo, que são as bases necessárias a um relacionamento sólido e gratificante.

A falta de respeito é sim mais do que motivo para acabar com qualquer relacionamento. Ninguém quer, precisa e muito menos merece ser obrigado a conviver com alguém que não o respeita. Se por questões práticas o afastamento total não é viável no momento, o conselho é buscar o quanto antes a ajuda psicológica (acredite-me: você vai precisar de terapia para entender e superar em si as deficiências que o tornam vulnerável a esse tipo de pessoa) e com a ajuda dele, praticar o grey rock que descrevi na Parte IX desta série, enquanto se prepara e reúne as forças emocionais necessárias para botar em prática o próximo passo que é o stone wall.

Na prática, o stone wall é a absoluta erradicação da presença dessa pessoa da sua vida, erguendo uma barreira que a impeça de sequer contactá-lo por vias indiretas. Tendo estabelecido que seu parceiro, amigo, colega, vizinho ou familiar é um narcisista, com a ajuda do terapeuta você vai cuidar de se fortalecer emocionalmente para criar novas circunstâncias de vida e lidar com as consequências de eliminar essa pessoa da sua vida. Sim, isso requer planejamento e muita cabeça fria porque é algo que você terá que começar enquanto ainda estiver convivendo com essa pessoa tóxica e ainda vai duvidar de si e voltar atrás várias vezes até que finalmente entenda que não tem volta.

stone wall não é um joguinho de se fazer de difícil para chamar atenção, mas a única forma segura de se livrar do drama e do sofrimento e colocar um ponto final no abuso que você vem sofrendo. Tendo decidido pelo stone wall, guarde segredo absoluto e ensaie mentalmente a situação até sentir-se preparado para dar o primeiro passo que é afastá-lo do seu convívio diário.

Você vai precisar planejar cuidadosamente este afastamento, porque narcisistas tendem a reagir com violência e crueldade ao sentirem-se rejeitados. Você vai precisar observar o momento, criar circunstâncias e recorrer a subterfúgios para conseguir isso. Não hesite em pedir ajuda, mas seja muito cauteloso ao escolher seus confidentes para evitar cair nas mãos de um flying monkey - e, creia-me, muitas pessoas tiveram a desagradável surpresa de constatar não poderem contar com as próprias famílias para isso.

O ideal é poder contar com um intermediário absolutamente neutro e isento, como um advogado, por exemplo e deixar toda a negociação a cargo dessa pessoa, reportando-se a ela e a ela somente - sem exceção. A ideia é evaporar-se da vida do narcisista, e fazê-lo pode ser desconfortável e gerar alguma culpa. Se ajuda, lembre que o respeito é uma via de mão dupla: quem não dá, não merece receber; engula seco e vá em frente. 

Se está casado ou numa relação estável, existem questões legais que você não pode ignorar a não ser que esteja disposto a perder a guarda dos filhos junto com quaisquer bens que tenha compartilhado com o narcisista. Acredite-me: ele irá lutar com unhas e dentes para manter tudo exatamente onde está mesmo que já esteja desfilando publicamente com o novo parceiro e prometa de pés juntos "livrar-se" dele para ficar só com você. Isso é só uma estratégia para ganhar tempo até que consiga consumar sua vingança subtraindo tudo que lhe for mais precioso para então largá-lo como um saco de lixo - o que fará com um sorriso de grande satisfação e intenso prazer.

Se você tem filhos menores com o narcisista, o mais provável é que tenha que esperar até que atinjam a maioridade para conseguir afastar-se por completo, mas ainda assim é possível implementar boa parte do stone wall, tomando várias precauções como bloqueá-lo e aos seus flying monkeys em todas as redes sociais das quais participe e instruindo seus amigos e familiares a fazerem o mesmo. Também é importante estabelecer um sistema de contatos indiretos com ele, restringindo-os a emails e mensagens - evite até mesmo os telefonemas. E esses contatos devem ater-se somente às questões objetivas como horários em que ele virá pegar as crianças ou trazê-las de volta: não responda às provocações e não discuta em hipótese alguma. Tampouco permita que ele passe do portão da sua casa ou emprego: informe porteiros, colegas e vizinhos que tal pessoa não está autorizada a ingressar nas áreas comuns do condomínio. Se junto com o advogado tiver juntado provas suficientes, obtenha uma ordem restritiva e não hesite em chamar a polícia sempre que se sentir ameaçado.

Documente tudo. Acostume-se a manter uma agenda, registrando datas e horários para todo o contato que tiver com ele: você pode vir a precisar desses relatos em juízo ou numa delegacia de polícia e não pode confiar na própria memória, porque a tensão emocional e os desvios cognitivos que o narcisista implantou em você na "lua de mel" tendem a confundir sua percepção depois de algum tempo, e parecer confuso e inseguro diante de um juiz ou delegado não vai ajudar em nada.

Tipicamente, o narcisista desrespeitará os dias e horários estabelecidos para a visitação, tentando aparecer de surpresa ou ignorando as crianças por semanas, mesmo meses a fio para aparecer de uma hora para a outra coberto de sorrisos e com os braços carregados de presentes. Registre e documente tudo e informe seu advogado sempre que isso acontecer.

O ideal é poder contar com alguém que não esteja emocionalmente envolvido na situação para representá-lo em todos os contatos com o narcisista. Você pode combinar com um motorista profissional da sua confiança para levar e buscar as crianças nos dias de visita, por exemplo. E se o narcisista se recusar a devolver as crianças, não hesite em acionar a justiça: não é raro que eles usem desse artifício para forçar um tête-à-tête - que é a última coisa que você quer que aconteça, a não ser que goste de ser abusado verbal e, em certos casos, fisicamente.

Se o narcisista é que ficou com a guarda das crianças, a primeira coisa a entender é que ele (ou ela) as usará para chantageá-lo sem a menor consideração pelo prejuízo que suas ações venham a causar aos próprios filhos. Mais razão ainda para documentar absolutamente tudo. Considere usar parte do tempo que tem com as crianças para prover o amparo e assistência psicológica profissional de que certamente necessitarão nem que seja preciso agendar horários flexíveis ou especiais com o terapeuta: ele será uma peça-chave no caso que estará montando junto com seu advogado para obter a guarda e preservar seus filhos do sofrimento causado pelo convívio com uma pessoa emocionalmente perturbada.

Resista às tentativas de chantagem que se sewguirão. Ao contrário do que o narcisista tentará fazer parecer, ela não acabará no momento que você ceder, mas ficará cada vez pior. Ceder à chantagem de um narcisista é se colocar nas mãos de uma pessoa que não quer nada de bom para você e tudo que se relacione a você - incluindo seus filhos, mesmo que sejam filhos dele também. Ao ver-se preso à teia, em situações aparentemente sem saída, pense no amanhã, no que quer para si e, principalmente, na qualidade de vida que quer para os seus filhos e busque ajuda profissional. Aplique o grey rock: faça-se frio, duro e insondável como uma pedra cinza para o narcisista: não lhe dê nenhuma reação emocional e procure ganhar tempo até  você e sua rede de apoio encontrarem uma saída.

Nem todos os narcisistas são psicopatas, mas todos os psicopatas são narcisistas e estabelecer essa diferença é difícil até para profissionais especializados. Não tendo como saber se você e sua família correm risco real e imediato, é prudente partir do princípio de que esse é o caso e tomar as devidas precauções para reduzir e, se possível, eliminar os riscos. As crônicas policiais nos trazem exemplos diários de pessoas que falharam em se acautelar devidamente.

Agora, se você não tem filhos com o narcisista, todo o processo é bem mais direto desde que você aceite que provavelmente perderá bens e dinheiro no processo. Se tiver tempo, recursos e suficiente frieza emocional, você até pode manobrar para reduzir o prejuízo, mas já vou avisando: demanda tempo, sagacidade e muita diplomacia para conseguir se afastar de um narcisista sem deixar para trás alguns anéis e fios de cabelo.

O próximo passo é cortar todas as vias de comunicação e livrar-se de tudo que sequer lembre a existência dessa pessoa: fotos, presentes, cartas, mobília, roupas... o que for. Se puder, mude de casa, mude de ares, mude de círculos sociais. Afaste-se dos amigos dele e de qualquer amigo ou mesmo familiar seu que tente defendê-lo sem desculpas ou explicações. Troque todas as suas senhas e bloqueie o narcisista e todas as pessoas próximas a ele em todas as redes sociais de que participe e revise as configurações de privacidade dos seus perfis de forma a controlar o acesso às suas informações: nunca faça check-ins públicos em bares, restaurantes, academia, locais de trabalho, etc... não faça updates públicos e seja muito criterioso ao aceitar pedidos de amizade.

Apague o número dele do seu telefone e troque o seu número para não receber mais nenhuma ligação ou mensagem. E se recebê-los, não responda - de preferência sequer visualize emails e mensagens. Outra coisa: se o narcisista tinha acesso ao seu computador, tablet ou celular, a fim de evitar surpresas desagradáveis, procure o quanto antes um técnico e peça que faça uma varredura por atividades suspeitas e/ou programas espiões.

Tendo feito isso, discipline-se para não buscar online qualquer informação sobre a pessoa. E sempre que sentir aquela urgência em falar umas verdades, escreva numa folha de papel e depois queime tudo. Certifique-se de ficar fora do radar dele: narcisistas defendem com unhas e dentes o que consideram ser seu círculo de influência e a melhor maneira de se proteger dos seus ataques é deixar que siga agindo livremente dentro dele. Se recuse a ouvir fofocas ou novidades sobre o narcisista: a partir do momento que o tirou da sua vida, nada do que ele fizer o do que acontecer do outro lado do muro é da sua conta ou responsabilidade.

Creia-me: a menor concessão só vai servir para atrair ainda mais caos e sofrimento para a sua vida.

E não perca um segundo do seu tempo para tentar devolver na mesma moeda: a vingança é o piloto-automático do narcisista. Sequer cogite ficar por perto para ver quando ele quebrar a cara. Mais cedo ou mais tarde é exatamente isso que vai acontecer e, acredite em mim: isso não vai trazer a menor satisfação, não vai ajudar em nada na sua vida, a única coisa que esse tipo de pensamento faz é aprisionar você àquela pessoa e permitir que ela continue controlando os seus sentimentos. Entenda: o grey rock é uma estratégia a qual os próprios narcisistas recorrem com frequência como forma de afirmar o quanto são superiores, mas enquanto para eles isso é só um jogo de cena, para nós é o ponto final, significando que paramos de jogar e largamos mão de vez.

Pratique algum exercício físico para dar vazão à raiva que vai sentir à medida que se desintoxica e percebe a extensão do abuso, a crueldade das mentiras, maquinações e manipulações a que se submeteu por aquela pessoa. Sim, a consciência do quanto traiu a si mesmo e do quanto se sacrificou por alguém que absolutamente não o respeita como um ser humano é muito, mas muito revoltante. Mas isso é problema dele, não seu.

Nos momentos de fraqueza, entenda que você está se recuperando de um vício - literalmente. Os ciclos de sofrimento e êxtase que o narcisista criou na sua vida o deixaram viciado em emoções intensas. Todos sabemos o triste fim que aguarda os viciados mais cedo ou mais tarde na vida, e eu não quero isso para você. Você não quer isso para si mesmo.

Vai passar. Os primeiros dias podem ser bem difíceis, mas quanto mais tempo você passar totalmente alheio à mera existência daquela pessoa, melhor, mais fortalecido e mais em paz vai se sentir.

Finalmente, fica o conselho: não busque outro relacionamento sério enquanto sentir o menor impulso de dar uma lição no narcisista. Primeiro, porque é usar outra pessoa exatamente do mesmo jeito que o narcisista usou você. Segundo, porque está fragilizado emocionalmente e as chances de cair como um patinho nas garras de outro narcisista são imensas, particularmente dos que se disfarçam de ombro amigo, cheios de compreensão e conselhos dimensionados para desarmar as poucas defesas de que dispõe e abusar de você logo adiante.

Concentre-se mais em resgatar sua auto-estima pelos próprios meios: aproveite para estudar, viajar e se enriquecer como pessoa. Igualmente, aproveite para revisar alguns conceitos ultrapassados sobre si mesmo, o que quer, o quanto se dispõe a dar e o que merece receber em troca nos relacionamentos em todas as instâncias da vida. E tendo definido, cuide de nunca mais deixar por menos.

18 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE IX: GREY ROCK


O termo grey rock (pedra cinza) foi cunhado por psicólogos comportamentais para designar uma técnica de auto-defesa emocional que com a prática leva à neutralização do abuso emocional. Por aqui conhecemos essa estratégia como "cara de paisagem" - algo que aplicamos na maioria das vezes de forma espontânea ou inconsciente.

Basicamente, o grey rock consiste em fazer cara de paisagem e não deixar transparecer emoção alguma, dedicando-se a observar sem absorver a toxicidade de pessoas "difíceis", e seu emprego é recomendado sempre que nos sentimos desconfortáveis na presença de alguma pessoa ou em determinados ambientes. Nem todas as pessoas "difíceis" são narcisistas, mas todos os narcisistas são pessoas "difíceis". 

Praticar o grey rock vai ajudá-lo em três níveis:
  1. neutralizar o impacto da agressão verbal no momento que ocorre
  2. preservar e/ou clarear seu raciocínio durante a agressão verbal
  3. ajudá-lo a reconhecer em si mesmo os pontos sensíveis que o tornam vulnerável às agressões
Observe, não absorva*

A agressão emocional é sempre e necessariamente uma estratégia de intimidação à qual recorrem indivíduos emocionalmente fracos quando vêem frustradas tentativas anteriores e mais sutis de manipulação. Pense numa criança fazendo birra: por impressionantes que pareçam os gritos e ofensas do abusador, ele está agindo exatamente da mesma maneira. Gritos e ofensas são sinais de derrota, não de vitória. Portanto, a primeira coisa que precisa entender é que quando o outro grita e ofende, a vantagem é sua, conquanto se mantenha calmo e não entre no jogo do agressor: gritos e ofensas são uma tentativa de empurrá-lo para o único terreno onde o agressor se sente em vantagem, porque é um terreno que domina melhor do que você e se você está lendo este artigo, é bem provável que já tenha cedido anteriormente, e se arrependido profundamente depois.

Eu quero ajudar você a acabar de vez com esse arrependimento. Eu quero que você assuma o controle sobre a própria vida e decisões. Eu quero que você viva em paz, porque a felicidade só faz ninho onde existe paz.

Talvez não seja muito fácil no começo, mas nós precisamos que você persista, que insista depois de ter falhado: ninguém é perfeito e é muito difícil manter a calma quando estamos sendo ameaçados e/ou acusados de coisas tenebrosas. Ninguém nasce com sangue de barata, mas podemos aprender. E não tem limite de idade para aprender.

Então, eu quero que você comece praticando a observação.

Observe aos outros, observe a si mesmo.

O humor do parceiro/amigo/colega mudou? Observe.

O seu humor mudou? Observe.

O humor das pessoas à sua volta mudou? Observe.

E enquanto observa, pergunte-se:
  • Como está se sentindo com essa mudança?
  • Está ansioso, nervoso, tenso?
  • Por quê?

Quando nos sentimos ansiosos, nervosos ou tensos, nosso instinto de sobrevivência está mandando um recado, antecipando uma situação potencialmente ameaçadora antes mesmo de termos consciência disso. Então, observe e pense. Tente lembrar se disse ou fez alguma coisa que pudesse ter incomodado essa pessoa - pessoas "difíceis", e narcisistas em particular, se ofendem com as palavras e atitudes mais inocentes e insignificantes, e isso é problema delas, não seu - a não ser que pretenda andar pela vida pisando em ovos e sendo usado e abusado por esse tipo de gente.

Se o outro simplesmente explodiu na sua cara sem aviso, eu quero que você recue um passo dentro da sua cabeça. Faça cara de paisagem e não reaja: não diga nada, não faça nada - apenas observe. E observando, pergunte-se: por que esta pessoa está agindo assim comigo exatamente neste momento? Lembre: neste primeiro momento, o foco não é você. Por mais que o outro queira fazer parecer, o foco é ele: ele é que está incomodado, ele é que tomou a iniciativa, ele é que começou, logo, o problema é dele, não seu. Observe do que está sendo acusado, exatamente: quando se trata de narcisistas, eles têm o patético hábito de acusar os outros de agirem exatamente como eles próprios estão agindo pelas suas costas. Então, ao invés de se defender das acusações, por revoltantes e irreais que pareçam, observe e guarde. Não responda às acusações, apenas diga que retomará a conversa quando ele estiver mais calmo.

Caso a explosão resulte de você ter criticado alguma conduta do outro, e ele reagir acusando você, finja ser um disco riscado e insista no seu questionamento original: não se deixe enrolar. Quando acuadas, essas pessoas costumam partir para o ataque, muitas vezes recorrendo a argumentos totalmente estapafúrdios com o intuito de colocá-lo na defensiva. Mantenha a calma, faça cara de paisagem e volte à crítica que fez no começo de tudo. Ouça o que ouvir, mantenha-se calmo na certeza de que existe os motivos que o levaram a começar a conversa são válidos, e isso é tudo que importa no momento.

Se estiver discutindo com um narcisista, prepare-se para ter todos os seus fracos atingidos com crueldade. Esse modus operandi é tão universal que a gente chega a desconfiar que narcisistas não nascem: são fabricados em série e escondem o código de barras por trás do umbigo.

Não absorva. Essas pessoas são como vampiros que se alimentam das emoções dos outros - e são viciadas nelas. Como todo o viciado, elas vão aumentando as doses na tentativa de voltar a sentir o "momento mágico" da primeira vez que experimentaram. Isso é particularmente perverso nos relacionamentos "amorosos" - e aqui falo especificamente dos narcisistas: como são incapazes de reciprocidade, a etapa da acomodação por que passam os relacionamentos afetivos normais é para elas o fim do relacionamento. Portanto, o momento de sedimentação que permite a uma relação se consolidar no companheirismo capaz de manter-se por uma vida inteira é o fim, para o narcisista, porque no seu entendimento, amor é a paixão desenfreada cheia de incertezas e inseguranças: esse nível  de intensidade tem que ser uma constante para o narcisista e ele fará de tudo para prolongá-lo, mesmo que isso signifique esgotar o parceiro emocionalmente.

A questão aí é que como seus sentimentos não são autênticos, por exacerbados que aparentem ser, depois de uma briga descomunal, o narcisista vira para o lado e dorme como um bebê enquanto você perde o sono tentando se acalmar e fazer algum sentido de tudo que aconteceu. Em poucos meses, você estará em frangalhos enquanto ele já busca a próxima vítima - e, acredite-me, sempre há uma próxima vítima.

Observar sem absorver é o primeiro passo para você se salvar antes que a toxicidade dessa pessoa destrua sua identidade e vontade de viver. Até aqui eu venho explicando e demonstrando como funciona a mente dessas pessoas, para ajudá-lo a entender o porque de serem capazes de fazer tanto mal aos outros e seguirem convencidas de que elas é que foram as vítimas. Nem você nem ninguém vai mudar isso. Você só pode mudar a si mesmo. Você só pode salvar a si mesmo.

Pratique meditação, qualquer método que o ajude a criar e manter uma barreira invisível entre suas emoções e essa pessoa: observe a pessoa tóxica, entenda a pessoa tóxica, mas não absorva sua toxicidade na certeza (e isso é absoluta certeza mesmo) que nada do que elas dizem ou fazem é por sua causa, em absolutamente todos os sentidos.

O ideal é afastar-se, cortar relações e ignorar a própria existência de pessoas tóxicas, mas isso nem sempre é possível: às vezes essas pessoas são nossos pais, irmãos ou parentes de quem não podemos simplesmente nos afastar de uma hora para outra - e creia-me: pessoas tóxicas são especialistas em criar circunstâncias que tornam difícil a distância física. Não podemos absolutamente mudar o seu comportamento, como nos tratam ou como se dirigem a nós: enquanto existirem, seguirão manipulando, fofocando, caluniando e criando dramas desnecessários por motivos fúteis, nos agredindo e ofendendo sempre que quiserem de nós algo que não estamos dispostos a dar. Como eu afirmei mais acima, esse é o jogo delas, e é um jogo no qual sentem-se vencedoras há décadas.

Observe, não absorva. Repita para si como um mantra. Escreva num bilhete e cole na geladeira, se necessário: observe, não absorva.

Usando o grey rock, ou "cara de paisagem", você aprende a ocultar o impacto emocional que elas têm sobre si. Você se expõe menos aos ataques primeiro, porque se sua expressão é neutra, fica muito difícil para elas identificarem os seus pontos fracos para usá-los contra você. Segundo, porque ao verem que não conseguem extrair o suco precioso das suas emoções, elas acabarão desistindo, deixando-o em paz enquanto partem para buscar outra vítima, e como a iniciativa terá partido delas mesmas, se sentirão menos inclinadas a buscar a vingança fazendo a sua caveira por aí. Aí sim, você pode implementar o próximo passo que é cortar todo o contato, erradicando todos os traços da presença dessas pessoas em sua vida, fechando a porta e botando uma boa trava com cadeado para nunca, mas nunca mais mesmo abrir.


* a técnica "observe, não absorva" foi desenvolvida pelo terapeuta norte-americano Ross Rosenberg, um dos poucos especialistas no tratamento de vítimas dos narcisistas.

17 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE VIII: O QUE É MEU É MEU, O QUE É SEU É NOSSO


Essa é uma crença muito frustrante para quem precisa conviver com um narcisista em família, na escola ou no trabalho: ao mesmo tempo que protege com unhas e dentes o que considera "suas coisas", narcisistas não mostram o menor respeito e não têm o menor pudor em usar, abusar ou mesmo surrupiar os recursos alheios. Isso é feito de maneira mais ou menos ostensiva, dependendo do grau de dissimulação do narcisista.

Narcisistas dissimulados gostam de se mostrar generosos, comprando a lealdade dos outros com presentes e agrados - preferencialmente adquiridos com recursos de terceiros: é a famigerada cortesia com o chapéu alheio Se pretende levar a nova conquista numa viagem, por exemplo, os recursos necessários serão obtidos de colegas, amigos, familiares ou mesmo o parceiro-titular, com as "emergências" variando de tom e intensidade na proporção do empréstimo desejado: transporte, hospedagem, dinheiro para as despesas, seja o que for. E ele é capaz de elaborar com riqueza de detalhes as histórias mais trágicas e confidenciá-las a você com as mãos tremendo e os olhos marejados, se for preciso. Sei de um que tirou férias, redecorou o apartamento e gozou de um estilo de vida privilegiado por três anos com o dinheiro que extorquia de uma idosa convencida que estava ajudando com exames, consultas e medicamentos no tratamento de um tumor no cérebro da parceira dele.

Nem mesmo um saldo bancário bastante favorável inibe o narcisista de tentar viver às custas dos outros. Para obter esses recursos, ele pode prestar um pequeno favor à vítima do golpe, como oferecer sua preciosa presença para um jantar (a ser pago pela vítima), mostrando-se particularmente aberto e compreensivo, ouvindo suas lamúrias e aconselhando-a "de todo o coração", para pouco tempo depois pedir de volta algum favor: carro, roupas, dinheiro ou as chaves da casa de praia, e por aí vai.

No que tange a recursos e favores, independente da natureza, a relação com um narcisista é sempre assimétrica. Narcisistas delirantes consideram o tempo investido na presença de alguém capital suficiente para essa troca, enquanto os dissimulados cuidam de simular a reciprocidade inflando o significado e importância do que quer que estejam oferecendo em troca. Se você ligar num momento de necessidade, por exemplo, o narcisista cuidará de informá-lo que tem um compromisso importantíssimo para pouco mais adiante, então virá ao seu encontro controlando o relógio tão ansiosamente que, constrangido, você acabará agradecendo e dispensando-o - talvez para flagrá-lo sentado num bar com amigos meia hora depois. É que os tais "compromissos urgentes" nunca são tão urgentes - se é que existem de todo - como o narcisista gota de fazer parecer, mas sim uma estratégia que ele emprega para valorizar-se aos seus olhos, extorquindo sua gratidão sem dar absolutamente nada em troca. Porque ele sabe como nos sentimos em dívida quando alguém larga tudo para se fazer presente quando chamamos.

Narcisistas também podem usar objetos de sua propriedade para obter acesso irrestrito às residências de pessoas consideradas necessárias, "emprestando-os" ou deixando-os sob a guarda dessas pessoas pretextando algum incidente ou situação inesperada, manobrando para obter as chaves do local onde se encontram seus objetos, garantindo assim não só o livre acesso como o uso dos recursos do local (telefone, luz, cama, cozinha, o que for) com o adicional extra de lá poder se instalar em caso de necessidade e pelo tempo que julgar necessário - caso em que removê-lo antes que tenha encontrado outro refúgio se mostrará difícil, conflituoso e potencialmente arriscado.

Nada do que o narcisista faz é espontâneo muito antes pelo contrário: tudo é planejado, medido e dimensionado para servir a segundas intenções.

Como percebe objetos como extensões de si mesmo, eles precisam ser os melhores, maiores, mais vistosos e invejados, devendo ser expostos como obras de arte. Manipulá-los envolve alto risco, pois o menor dano é visto como uma ofensa pessoal. No nível psicológico, esses objetos são extensões físicas que servem para compensar deficiências do narcisista. A paixão do sujeito franzino por seu 4x4 trai um traço de narcisismo mensurável pela extensão da sua relação com o veículo, que pode ir cumulativamente da mera ostentação ao ciúme doentio.

Paralelamente, o narcisista desvaloriza tudo que é propriedade dos outros. O que é dele é para ser guardado e o que é dos outros, usado (senão abusado) e descartado. O zelo e apreciação que dedica aos seus objetos não se estende à propriedade alheia, por ele tratada de forma desdenhosa e desleixada mesmo que seu objeto seja um surrado par de calças jeans e o do outro um smoking. Essa desvalorização é ainda maior se o narcisista deseja para si o objeto de outrem, que ele barganha para comprar barato, para depois, ainda por cima, exibi-lo para terceiros, cantando vantagem do tolo que enrolou.

Quando abrimos as portas de nossas casas, o fazemos entendendo que o visitante obedecerá o código de conduta implícito em nossa cultura, permitindo-se algumas liberdades à medida que a amizade ou relação se aprofunda ao mesmo tempo que esperamos reciprocidade nessas liberdades. Isso não existe com o narcisista, que a partir do instante que avança da soleira da porta passará a testar deliberadamente os seus limites, e se você não se mostrar inflexível, ele não só tomará conta do ambiente como não mostrará o menor constrangimento em aparecer de surpresa a qualquer momento do dia ou da noite acompanhado de estranhos e incentivando-os a se comportarem com o mesmo relaxamento que demonstra ao atirar-se no sofá, revirar a geladeira ou as estantes, bisbilhotar pelos outros cômodos ou ligar a televisão como se estivesse em casa. Isso pode ocorrer de maneira mais ou menos dissimulada. Para forçar seus limites ele pode, por exemplo, se mostrar tocado e agradecido pela sua hospitalidade, ou confidenciar que o excessivo rigor do parceiro torna a própria casa um ambiente inóspito onde ele não se sente à vontade; ou pode simplesmente dispensar arrogantemente os seus protestos: tudo depende do grau de utilidade que atribuiu a você na escala das suas relações.

Por outro lado, se o visitante é você, sempre há alguma coisa impedindo que se sinta à vontade na casa do narcisista. Às vezes é um sentimento vago, por mais solícito que ele se mostre, que impede que você relaxe naquele ambiente. Muitas vezes é porque soube pelo narcisista das "manias" do parceiro ou outras pessoas que lá residam, e para evitar qualquer inconveniente ao anfitrião, você cuida de obedecer às "regras da casa". Seja como for, é difícil sentir-se "em casa" na casa de um narcisista na mesma proporção que ele parece sentir-se à vontade na sua casa.

Empréstimos ao narcisista são a fundo perdido. Seja dinheiro ou objetos, tendo conseguido por as mãos em alguma coisa sua, é muito difícil que venha a devolver, podendo "perdê-la" se você insistir muito. É uma coisa tão absurda que ele pode chegar a jogar fora o que tomou emprestado só para não devolver. Os empréstimos são outra estratégia que narcisistas usam para conhecer os seus limites enquanto determinam o seu grau de "utilidade".

Não é raro que a iniciativa para criar uma relação de trocas desta natureza parta do próprio narcisista, que tentará emprestar ou mesmo "doar" alguma coisa, via de regra algo de que ele queira se desfazer e que para você tem igualmente pouco uso ou necessidade como uma peça de vestuário, por exemplo; insistindo e argumentando ante a sua recusa de forma a constrangê-lo a aceitar. Tendo aceitado esse "favor", você naturalmente se sentirá obrigado daqui para a frente a corresponder. Não surpreendentemente, no entanto, os objetos e/ou favores que ele virá a pedir em troca serão incomparavelmente mais valiosos e úteis, e se não tiver seus limites muito firmes e claros, você pode facilmente chegar a ponto de se privar de coisas das quais necessita para atendê-lo.

O que é preciso entender disso tudo é que independente da natureza da sua relação com um narcisista, ela sempre será não-recíproca e assimétrica, com a balança pendendo cada vez mais para o lado dele. E quanto mais o narcisista dever, mais vai lhe cobrar e mais à vontade mais à vontade vai se sentir para tomar o que quiser quando e como lhe aprouver.

E isso vai seguir acontecendo até que você entenda que se depender do narcisista, sua obrigação é entregar todos os seus ovos de ouro sorrindo e mostrando-se agradecido pelos ovos podres que recebe em troca.

Simples assim.

10 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE VII: NENHUM REMORSO


Uma pessoa pode apresentar comportamentos tóxicos sem ser necessariamente uma pessoa tóxica. A diferença entre "comportar-se como" e "ser"se mede pela capacidade de perceber o prejuízo que causa aos demais, demonstrar remorso autêntico e se esforçar de fato para corrigir tais comportamentos.

O narcisista é incapaz disso: ele cria o caos e culpa os outros. Se chega a admitir um erro, o faz como estratégia para manter a boa vontade da outra pessoa podendo até prometer corrigir-se, e simular pedidos sinceros de ajuda ao ofendido, para tão logo se sinta seguro, não só abandonar todos os esforços retomando o comportamento tóxico anterior ao conflito, como transferindo ao outro a responsabilidade e empenho em "consertar" a situação e cuidando de responsabilizá-lo não só direta e pessoalmente, como perante terceiros, podendo até recorrer à Justiça buscando "reparação".

Quanto mais grave for a ofensa por ele cometida, mais ofendido se mostrará com a vítima. Isso porque além de ser incapaz de admitir os próprios erros, ele projeta seus próprios nos outros: se explora financeiramente uma pessoa ela é que o está explorando; quando  trai seu parceiro, o faz porque está sendo traído; se abusa dos favores, é porque está sendo abusado e não há prova ou argumento capaz de fazê-lo ver a realidade.

Até porque tentar trazer à razão um narcisista pelo diálogo é como falar por um telefone sem fio: por mais que seja claro e objetivo, o narcisista reage como se você tivesse falado outra coisa completamente diferente. Você diz "pedra" e o narcisista entende "pau". Você pode repetir "pedra", explicando e demonstrando sua aparência e constituição física. O narcisista então dirá: "todo mundo está sabendo que é um pau, só você é burro de não ver e insiste em usá-lo como uma pedra". Diante da sua persistência, muitas pessoas intelectual e/ou emocionalmente frágeis começam a duvidar de si mesmas, dos próprios olhos e ouvidos e acabam pedindo desculpas. Outras, achando que não vale a pena discutir, decidem deixar para lá.

Esse "telefone sem fio" com inversão de culpa se chama gaslighting, e é entendido como uma estratégia de manipulação que cria uma cortina de fumaça, distraindo o oponente do foco da discussão ao mesmo tempo que o leva a duvidar dos próprios sentidos e cognição.

Assim entendemos porque partimos de um princípio de realidade que admite objetivamente não só a existência como a autonomia das outras pessoas.

Explico: toda a forma de manipulação parte do pressuposto de que o outro existe e está ali como um indivíduo autônomo cuja vontade queremos dobrar. Se não acreditássemos nisso, não haveria necessidade de divisar estratégias que o induzam a agir conforme nossas vontades ou expectativas. Essa noção é fundamental no que se chama "princípio de realidade". Só que o narcisista não atingiu esse estágio evolutivo.

Embora desfilem pelo mundo agindo e discursando como as pessoas mais racionais e maduras, emocionalmente os narcisistas seguem paradoxalmente presos à noção primitiva de um "eu" não individualizado, mas fundido todo o resto. Seus esforços naturais de diferenciação e autonomia foram sequestrados, de forma que sua personalidade não se formou amalgamando predisposições genéticas, experiências, sensações e influências para formar um todo ao qual novas experiências vão se juntando e redefinindo ao longo do tempo. Ela foi, sim, estilhaçada sob a pressão das expectativas do seu ambiente de origem para encaixar no molde que lhe era destinado: os fragmentos julgados "bons" foram consistentemente isolados e elevados à condição de definidores do próprio ser do narcisista ao mesmo tempo que os "ruins", julgados inaceitáveis, foram rechaçados e recalcados a ferro e fogo, resultando numa espécie de golem de aparência impressionante, mas essencialmente artificial.

Como se não bastasse, esse ambiente essencialmente opressor mostrou-se também perverso, pois os próprios elementos de referência se isentaram de prover eles próprios o exemplo prático das atitudes e comportamentos que exigiram da criança, ainda por cima usando insidiosamente do vexame e da humilhação como formas de punição.

A questão é que, como bem apontou Jung, queira ou não todo ser humano tem um lado obscuro ou uma "sombra", como ele próprio denominou. É nela que arquivamos e seguimos acumulando os rancores, raivas, frustrações, angústias, ressentimentos e todos os sentimentos e impulsos "negativos", junto com os aspectos ou vieses que desprezamos ou julgamos inaceitáveis em nós mesmos. Esse caldo de hostilidades vive em constante ebulição no inconsciente de todos, sem exceção. Ainda segundo Jung, enquanto não nos tornarmos conscientes e lidarmos com nossas próprias sobras, elas seguirão nos assombrando, materializando-se em pessoas ou circunstâncias que as reflitam de volta para nós.

Paralelamente a isso, suficientes pesquisas já comprovaram que a noção de justiça é integra a programação genética do ser humano: bebês de colo protestam tanto ao se verem alvos como ao perceber injustiças cometidas a terceiros.

Tendo tudo isso em mente, podemos começar a entender a dimensão da sombra carregada desde cedo pelos narcisistas e desenvolver alguma noção dos mecanismos inconscientes que lhes permitem ignorar completamente a presença de conteúdos negativos em si mesmos, projetando-os nos outros com tanta obstinação. 

Cada pessoa com quem o narcisista trava contato não é por ele percebida dentro do contexto específico daquele momento não como um indivíduo, mas como um golem personificando um dos conteúdos do seu próprio inconsciente. Se percebe o contexto da interação como "positivo", ele vê o outro como um golem benigno; se negativo, como maligno independente do histórico das interações entre ele e cada pessoa.

Por isso, mesmo que olhe, toque e se dirija a você, não é você à luz da sua história pessoal e de de tudo que ambos vivenciaram juntos que ele vê, mas a parte específica de si mesmo que as suas atitudes estão evocando naquele exato contexto. Parece maluco, e de certa forma o é. Imagine viver só "no momento" e terá como consequência os dois extremos: o Buda iluminado cuja noção de "eu" engloba o "todo", e o narcisista que é exatamente o oposto: um "eu" que se afirma pela negação do "todo". 

O narcisista é impermeável ao sentimento de remorso porque, em última instância, tudo que faz é direcionado e si mesmo e as consequências de suas ações habitam o vácuo representado pelas vidas dos outros cuja existência desconhece, já que nada existe ou persiste fora do seu campo de percepção. Não é que o narcisista "decida ignorar": ele é de fato incapaz de extrapolar qualquer dimensão humana fora do espectro limitado e limitante das suas projeções. O universo do narcisista não é real, objetivo, linear, lógico e causal conforme o percebemos; mas uma Ilha da Fantasia povoada por mínions onde ele reina onipotente, onisciente e onipresente.

Quando insulta e ofende a sua honra, por exemplo, o narcisista está apenas usando-o como um receptáculo da cólera que sente para consigo mesmo naquele momento. E aqui deixo uma dica preciosa para o momento que alguém se ver injustamente acusado por um narcisista: suas acusações costumam revelar exatamente o que ele próprio está fazendo às escondidas.

Por ofensivo que consiga ser, nada do que o narcisista faz ou deixa de fazer nesta vida tem a ver com qualquer um, além dele mesmo. As pessoas que cruzam o seu caminho são hospedeiros temporários para suas próprias facetas. Se o agradam, são boas, ótimas, excelentes, as melhores do mundo. Se o contrariam são más, péssimas, incompetentes, as piores do mundo. E esses  julgamentos são tão fluidos como circunstanciais: a pessoa maravilhosa de ontem é o hipócrita de amanhã não por ser consistentemente uma pessoa assim ou assado, mas por ter cedido ou negado um agrado ou favor.

Obviamente sua irresponsabilidade pessoal não os isenta da culpa. Muito mais que passar a mão pela cabeça e sentir pena dos "coitadinhos", o que eu pretendo aqui é ajudar você a compreender os mecanismos psicológicos que permitem a essas pessoas cometer maldades e se mostrar ultrajadas quando confrontadas com as consequências.

Se devidamente endereçado antes da idade adulta, o narcisismo pode ser contido de forma a não evoluir para a malignidade. Dificilmente será erradicado, mas com os devidos cuidados e atenção de terapeutas especializados, pode ficar limitado às formas mais brandas com as quais é possível conviver, estabelecendo vínculos afetivos em contextos relativamente benéficos.

O indivíduo com tendências narcísicas sempre será mais refratário às críticas do que a média das pessoas, e seguirá criando intrigas e manipulando os outros para obter alguma vantagem pessoal; mas pelo menos o fará dentro do princípio de realidade, aceitando alguma responsabilidade sobre suas ações e será, pelo menos, capaz de sentir remorso pelos danos que sua conduta porventura vier a causar - por mais que relute em admiti-lo publicamente.

8 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE VI: INTIMIDAÇÃO


A intimidação é um comportamento estratégico usado para forçar outro a entregar alguma coisa. O assalto é o exemplo clássico: antecipando que você não entregará seus bens por livre e espontânea vontade, o bandido se aproxima apontando a arma para sua cabeça. Assustado e temendo pela própria vida, você entrega o que ele está exigindo.

Portanto, sempre que sentir-se intimidado por alguém, cabe a pergunta: o que essa pessoa espera obter de mim desta maneira? 

Intimidadores seguem exatamente a mesma lógica do assaltante. Só não andam apontando revólveres por aí. Ao invés disso eles usam da linguagem oral com ofensas ou insinuações, e/ou corporal, mostrando dominância ou superioridade com uma postura corporal invasiva, desrespeitando seu espaço pessoal. Mas apesar de parecer representar um perigo real e imediato, essa atitude é um blefe: se a pessoa que intimida tivesse o poder de obter pelos próprios meios o que espera de você, ela o deixaria em paz.

Fica a dica, então: sempre que alguém apela para a intimidação, é porque está numa posição de inferioridade, logo, o problema é dele e a vantagem, sua.

Seria temerário, no entanto, confrontar cegamente indivíduos que usam da intimidação para se impor, pois quanto mais frágeis se sentem por trás do mise en scène, mais violenta será sua reação. O importante aqui é saber que é isso que está acontecendo, entender que você é que tem vantagem na situação e tentar ganhar tempo até encontrar uma saída que não comprometa sua integridade física, mental, emocional e financeira. A reação ideal quando se sentir intimidado é  dizer calma e firmemente "desculpe, não posso tratar disso agora" e se afastar.

O que o narcisista não consegue pela boa vontade das suas vítimas, ele busca obter pela intimidação seja por chantagem ou ameaças que podem ser sutis e subjetivas (acabar com a amizade, por exemplo), como passíveis de enquadramento penal. Tudo depende tanto do modus operandi do narcisista em questão como do quanto ele está necessitado do que quer que se encontre em seu poder.

Em outras palavras: enquanto as pessoas seguirem deslumbradas com seu elan, fazendo concessões na ilusão de estarem sendo beneficiadas pelo que quer que a atitude do narcisista pretenda oferecer, ele seguirá se sentindo à vontade para tomar mais do que se dispõe a contribuir seja em termos materiais ou emocionais. Mas o menor sinal de desconforto ou tentativa de impor limites às liberdades que se permite são percebidas pelo narcisista como uma humilhante ofensa pessoal.

Digamos, por exemplo, que o narcisista é seu sócio num empreendimento e você acaba de descobrir que ele vem desviando quantias significativas do caixa da empresa para gastos pessoais. Ao tentar confrontá-lo, por mais tato que use, suas palavras serão tomadas como uma ofensa pessoal e ele reagirá colérica e desproporcionalmente elevando o tom do que seria uma discussão normal entre sócios a uma enxurrada de ofensas e desaforos pessoais que fazem parecer pequenas as transgressões dele diante da sua incompetência em conduzir o negócio e cumprir com as suas obrigações, enfatizando o quanto está cansado de carregá-lo nas costas e inventar desculpas para os clientes que, por sinal, o seguirão quando deixar a sociedade. Intimidado, você cede só para constatar algum tempo depois que ao invés de diminuir, os saques aumentaram. A empresa está no vermelho, os fornecedores começam a suspender as entregas ou só vender à vista, os impostos e a folha de pagamento estão em atraso. E enquanto você corta despesas em casa, mal conseguindo rolar a dívida do cartão de crédito e perde noites de sono tentando resolver os problemas, seu sócio narcisista troca a BMW com seis meses de uso por uma Land Rover zero quilômetro. E quando as intimações e cobranças judiciais se acumulam na sua mesa, ele resolve levar a nova namorada para passear na Bahia. Afinal, nada disso é problema dele, porque você é o sócio-titular e ele não tem patrimônio algum em seu nome para ser apreendido e levado a leilão. Por esdrúxula que pareça, essa situação acontece com muito mais frequência do que se imagina. Que o digam os advogados e contadores.

Com  amigos, por exemplo, o narcisista pode abusar da hospitalidade, indo e vindo quando quer e bem entende e ignorando as regras do condomínio que, afinal, não foram feitas para ele que nem inquilino é. Ou ele pode tomar objetos emprestados sem pedir, abrir a geladeira e beber a única cerveja sem se dar ao trabalho de perguntar. E se o amigo reclamar, a própria existência da "amizade" será posta em xeque, e suas intenções virulentamente atacadas como egoístas, mesquinhas e por aí a fora. Ao ceder, o amigo arrisca chegar em casa do trabalho um dia para encontrar o narcisista com a namorada ou uma turma de estranhos degustando o vinho que você vinha reservando na adega e devorando os petiscos que comprou para receber os amigos no dia seguinte.

Se for seu colega de trabalho, o narcisista pedirá que complete ou corrija suas tarefas às escondidas do chefe. "Fico lhe devendo essa" é a promessa que nunca é cumprida, pois ele sempre tem uma "emergência" que o impede de retornar o favor. E se por azar flagrá-lo cometendo algum ato ilícito, se deixar intimidar a ponto de fazer vistas grossas para meses, para subitamente ser demitido sumariamente como se fosse o autor dos ilícitos que ele cometeu - e não se surpreenda se a "denúncia" tiver partido do próprio narcisista.

O que os exemplos acima pretendem demonstrar é que ceder à intimidação só piora situações que já eram difíceis de manter. Ceder à intimidação por mais que evite alguma situação desagradável no presente, não só não impede que o que quer que se tente evitar acabe acontecendo de qualquer jeito, como abre um caminho sem volta para mais abusos e exploração. É como a chantagem: depois de ter pago o preço, que garantia você tem que de que vá parar? A pessoa bem pode decidir - e normalmente é o que acontece, que tendo obtido a quantia inicial com relativa facilidade, vale tentar arrancar outro tanto mais.

Por difícil que pareça quando acontece, o ideal é pagar o blefe do narcisista logo de saída e arcar com o prejuízo livrando-se dessa pessoa de uma vez por todas, porque tendo conseguindo intimidá-lo uma primeira vez, o narcisista seguirá intimidando com mais urgência e agressividade para obter o que quer, como e sempre que quiser até que você não tenha mais nada a oferecer, caso em que, independente do quanto tenha cedido e sido condescendente, será humilhado publicamente e descartado como uma fralda usada.

Caso a situação envolva risco pessoal ou patrimonial, não tente resolver tudo sozinho. Procure manter a calma por acuado que se sinta, e tente ganhar tempo do jeito que der, nem que para isso precise fingir um desmaio ou sair correndo do local: não tenha medo de parecer fraco ou covarde, até porque é assim que o narcisista o vê de qualquer jeito, caso contrário não tentaria intimidá-lo. O importante é interromper no ato a intimidação sem se comprometer com resposta alguma, e tratar de buscar apoio e conselho junto a familiares, amigos e profissionais em quem confia. Dê preferência a pessoas que não tenham nenhum envolvimento com o narcisista e seja totalmente honesto, por embaraçosa que seja a situação: você não é a primeira nem será a última pessoa a ter se submetido a situações vexatórias sob a pressão de um narcisista. Na verdade, eles costumam agir exatamente assim e forçar exatamente os limites que você julga mais elevados, porque sabem que as pessoas preferem comer sozinhas o pão que o diabo amassou a permitir que alguém saiba sobre a lama por onde se deixaram arrastar. Se você leu o post anterior sobre os flying monkeys, a esta altura já entendeu que é exatamente isso que vem acontecendo desde o começo, pois desde o momento que você cedeu pela primeira vez, o narcisista vem se encarregando de espalhar a "novidade" aos quatro ventos.

Não se desespere se se vir retratado ao ler essas linhas aparentemente duras: tudo, mas tudo mesmo nesta vida tem solução. Cada um de nós veio a este mundo suficientemente equipado para superar qualquer desafio que a vida apresente, e capaz se solucionar qualquer problema. Confie na qualidade do que carrega no coração e entre as orelhas: ninguém neste mundo está tão ocupado em ajudá-lo como você mesmo.

Por piores que sejam as fofocas, armações, calúnias e difamações de que você pode se ver alvo por não ceder à intimidação do narcisista, mantenha-se firme e confiante, na certeza de duas coisas: primeiro, que seriam muito mais graves caso tivesse cedido e, segundo, que todas as pessoas que entram em contato com o narcisista são alvos de fofocas, armações, calúnias e difamações do mesmo jeito que você, e se parecem poupadas ou premiadas pelas atenções dele, é só porque estão cedendo, talvez mais vergonhosamente que você.

Erga a cabeça e siga em frente com sua vida, lembrando as sábias palavras de Abraham Lincoln:
Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo ou todas as pessoas durante algum tempo, mas nunca todas as pessoas o tempo todo.
Não perca seu precioso tempo de vida tentando explicar ou defender-se, muito menos tentando expor ou vingar-se do narcisista: isso só o manterá dentro do foco de atenção dele estendendo desnecessariamente uma situação que de outra forma se encerraria caso ele estivesse concentrado em outra vítima. As pessoas não são estúpidas: cedo ou tarde acabam vendo o narcisista pelo que realmente é e se afastando.

Se parar e avaliar com calma e lucidez, resistir à intimidação, afastando-se do narcisista corresponde a separar o joio do trigo. É um momento de verdade, um divisor de águas que vai ensinar quem são seus verdadeiros amigos. Depois da tempestade sempre vem a bonança, e seu jardim, amigo, voltará a florir ainda mais do que antes.

7 de mar. de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO - PARTE V: FLYING MONKEYS


Antes de falar sobre flying monkeys, gostaria de deixar algumas coisas bem claras:

Primeiro: não existe "fofoca inocente" e ninguém é fofoqueiro por acidente: toda fofoca visa prejudicar alguém ao mesmo tempo que garante alguma vantagem ao fofoqueiro. Esta é uma das poucas regras sem exceção, por menor que seja a vantagem objetiva para o fofoqueiro, como por exemplo, exibir-se como uma pessoa "influente" que tem acesso a "informações privilegiadas" que o objeto da fofoca só revelaria a alguém muito íntimo, mesmo apesar de, na maioria das vezes estar repassando uma fofoca de segunda ou terceira mão.

Revelar "segredos" da vida de uma pessoa a terceiros é desrespeitoso, perverso e desleal. É pura maldade, muitas vezes gratuita. Gente civilizada ao ouvir uma fofoca se interessa mais no que ela revela do fofoqueiro do que no conteúdo da fofoca em si, pois é das mentes pequenas que vêm as maiores traições. Não que sejam lá tão brilhantes assim, é tudo questão de foco, como bem definido por Eleanor Roosevelt:
Grandes mentes discutem idéias, mentes medianas discutem eventos e mentes pequenas discutem pessoas.
A fofoca é uma arma poderosa na construção e destruição de carreiras e reputações. Pedimos a Deus que nos mantenha longe das más línguas, fugindo delas como o diabo da cruz. Mas nem toda a reza do mundo impede que elas venham até nós e de forma particularmente ofensiva quando entramos mesmo que desavisadamente na mira de um narcisista. Porque se há arte ou ofício em que o narcisista se supera é em criar intrigas plantando fofocas por onde quer que passe.

E mentes pequenas e medianas são o terreno fértil onde ele cultiva seus flying monkeys.

Flying monkeys são os macacos voadores que servem à Bruxa Malvada do Leste no Mágico de Oz, e que ao mesmo tempo que espionam o reino para informá-la sobre tudo que acontece, atazanam e aterrorizam seus desafetos.

Os flying monkeys a serviço do narcisista fazem exatamente a mesma coisa, chegando a comprar brigas que não são suas por "tomar as dores" do narcisista. Portanto, regra de ouro número 1 para não virar uma marionete a serviço de terceiros é jamais tomar a si as dores de outro adulto e ir "tirar satisfações" no seu lugar. Se começar a realmente observar o comportamento das pessoas ao seu redor, provavelmente vai se surpreender com a quantidade de tempo e energia que as pessoas desperdiçam tramando e manipulando para que outras tomem uma atitude (que caberia a elas próprias tomar) ou assumam alguma responsabilidade no seu lugar.

Manipulados pelo narcisista, os flying monkeys praticam o bullying ou assédio moral convencidos de estar defendendo uma boa causa e/ou punindo uma pessoa egoísta e cruel.

A imensa maioria das pessoas em algum momento já usou ou foi usada como um flying monkey, isso faz parte do aprendizado necessário ao convívio social, e costumamos evitar esse tipo de envolvimento tão logo atingimos plena consciência das ramificações e consequências negativas para todos os envolvidos. Essa consciência pode ser atingida cedo na infância ou na idade adulta, dependendo do tempo que cada pessoa leva para amadurecer emocionalmente, abandonando a crença de que o mundo deve se  curvar e adaptar aos seus desejos e caprichos e aceitando de vez o princípio de realidade, ou a existência de  limites e consequências para suas ações; tornando-se capaz de suportar a dor como contingência e recusando gratificações imediatas que tenham como resultado dano ou prejuízo para si ou para os outros.

Em toda a sua vida, o narcisista jamais chegará a atingir a maturidade emocional caracterizada por esse estágio. Ainda ontem li um artigo num site para psicólogos aqui do Brasil algumas "dicas" para tratar o narcisista com carinho e compreensão e ajudá-lo a buscar ajuda profissional. Nada poderia ser mais errado e até insidioso para as pessoas que estão sofrendo sob o domínio tirânico de um narcisista: o narcisismo é tão curável quanto a psicopatia, a sociopatia e outros transtornos de personalidade. O narcisismo não é uma condição ou doença, é um desvio estrutural causado por traumas profundos e persistentes nos estágios iniciais da formação afetiva de um ser humano. A personalidade narcisística é o "robô gigante" que essa criança criou para defender-se, e fez isso tão cedo no desenvolvimento que ao chegar à idade adulta já não existe distinção entre seu organismo e a máquina que inventou. A única possibilidade de reversão desse processo é a intercessão terapêutica anterior à sua consolidação tanto da criança como de todos os seus familiares, entre os quais, via de regra, haverá pelo menos, senão vários narcisistas.

 De mais a mais, ainda são raros os especialistas em saúde mental devidamente preparados e emocionalmente equipados para tratar devidamente o problema. O que se vê nos fóruns de ajuda mútua são cônjuges e familiares que tendo procurado a ajuda de um terapeuta acabaram vitimizados também por esse, sendo inúmeros os casos de pessoas que foram não só sujeitas a tratamentos, internações e medicamentos de que não necessitariam se vingassem se afastar física e emocionalmente dos narcisistas em suas vidas.

Enfim, voltando aos flying monkeys... antes de sair pela tangente, eu estava dizendo que os flying monkeys são um estágio na nossa evolução emocional e para isso não é preciso nenhuma ciência: basta observar o comportamento de crianças e adolescentes nos pátios das escolas. E para conhecer as estratégias de sobrevivência social praticadas pelo narcisista, basta observar o comportamento dos bullies, e, particularmente no tema que estou abordando aqui, os da sua "turma", particularmente como a pessoa do bully é o que sustenta e mantém sua "união", e em como essa fragilidade é compensada por gestos, gostos, crenças, comportamentos e modismos estereotipados que só fazem sentido no contexto da gangue. Via de regra, o bully maior, ou o "cabeça" é aquele que se recusa a abandonar os trejeitos e modismos, no máximo os adaptando quando é transferido para um ambiente novo, onde logo cuidará de criar outra gangue. Os demais, quando adequadamente providos de estrutura e amparo emocional não têm grandes dificuldades em abandonar o "jeito de ser" da gangue ao deixá-la seja por iniciativa própria ou pela intervenção de alguma autoridade ou referência adulta.

Embora muitos narcisistas persistam criando e liderando gangues, clubes, grupos, empreendimentos, cultos ou times para dar vazão à raiva e hostilidade que permeia sua relação com o mundo ao longo da vida adulta; outros tantos reservam tais sentimentos para manifestá-los na intimidade de seus lares. Aqui arrisco a hipótese totalmente empírica e sem nenhum embasamento em pesquisa, de que os primeiros foram vítimas de abuso paterno ou de uma referência masculina quando pequenos e os segundos de abuso materno ou de uma referência feminina, tendo os primeiros como foco da hostilidade a sociedade em geral e os segundos os círculos íntimos compostos por amigos e familiares.

Desculpem se saí pela tangente outra vez: enquanto escrevo, estou elaborando um manancial de informações coletadas ao longo de décadas de leituras sobre um tema que começou como uma curiosidade pré-adolescente sobre o episódio dos Mucker, um grupo de fanáticos religiosos dizimado pelas forças policiais na colônia alemã do Rio Grande do Sul ainda no tempo do Brasil-Império, passando por Charles Manson, pelo suicídio coletivo dos 900 seguidores de Jim Jones em 1979, para citar alguns exemplos, percorreu dezenas de biografias de serial killers até descobrir-se no rastro narcisismo como o longo fio que percorre os meandros e recônditos desse labirinto de tragédias. Muito do que estou escrevendo nestas páginas são constatações, elaborações e notas soltas que só agora começam a ganhar corpo e coerência.

Como soldados são instruídos apenas com as informações necessárias ao cumprimento de suas funções no terreno de batalha, o narcisista abastece seus flying monkeys com informações parciais, a sua versão do fato, ou mentiras deslavadas, conforme convir no momento. Isso se aplica a todas as pessoas visadas pelo narcisista, incluindo os próprios flying monkeys. Essa estratégia cria um clima de desconfiança e competição quando não animosidade orquestrado pelo narcisista para evitar qualquer troica de informações não supervisionada, com o adicional de criar um clima de suspeição para neutralizar potenciais queixas, reclamações ou tentativas de exposição por quem quer que se sinta por ele lesado ou prejudicado.

O narcisista não tem o menor pudor em caluniar seus flying monkeys, alimentando e superdimensionando eventuais indisposições, e quando aconselha o faz para aprofundar os conflitos a fim de se estabelecer como único elemento "confiável" no grupo.

Laços familiares e amizades de longa data podem ser vaporizados pelo narcisista sem o menor remorso ou pudor e em pouco tempo. Quanto mais útil se mostrar o flying monkey, mais o narcisista buscará isolá-lo, intermediando suas relações na tentativa de colocá-lo sob seu controle. Suspeito que assim aja porque manter o controle sobre diversas pessoas relativamente autônomas ao mesmo tempo seja mentalmente extenuante, e o controle absoluto significa menos um elemento com quem se preocupar.

Não cansarei de enfatizar que servir como flying monkey não oferece imunidade alguma às fantasias humilhantes criadas pelo narcisista. Por mais que você tenha dado provas de fidelidade, honestidade e comprometimento, isso não o impede nem nunca impedirá de expor suas fraquezas e intimidade acrescentando ou mesmo inventando histórias a seu respeito sempre que julgar conveniente ou perceber alguma vantagem.

O respeito, indulgência e fidelidade absolutos que o narcisista exige para si, ele só dedica ao(s) abusador(es) da sua infância, elevado(s) à condição de ser(es) infalível(eis) e irrepreensível(eis): de maneira simplista, ele(s) precisa(m) ser perfeito(s), para resignificar e tornar aceitáveis as humilhações e maus-tratos de que foi alvo ainda antes de compreender as primeiras palavras.

Portanto, para encerrar, desenvolva em si a disciplina de sempre que alguém vier falar de outra pessoa para você, perguntar: o que essa pessoa pretende obter me contando isso? E se não souber responder ou desconfiar das intenções dessa pessoa, pergunte na cara, na lata mesmo: por que está me contando isso?

A experiência ensina que é por mentiras e jamais pela verdade que se perdem as amizades que vale a pena manter nesta vida.