31 de dez. de 2016

... E SATURNO BATE À PORTA



2016 encerrou com "chave de ouro" os desvarios de 36 anos de foco excessivo no ego, no "eu". Foram 36 anos de "eu contra todos", "eu é que mando", "quem sabe de mim sou eu", "eu sou", "eu quero", "eu vou", e danem-se os outros.

Para os observadores - sim, ainda restam uns poucos por aí - 2016 foi o auge do porre coletivo cujos efeitos começaram a ser sentidos já em 2011 e 2012. Muitos, antevendo o rumo da festa, cuidaram de se manter lúcidos e ajudar a tantos quanto possível. Outros tantos foram forçados a abandonar a festa por algum acidente de percurso. Mas muitos outros embarcaram no trem da alegria narcísica, inebriados pela ilusão de que o mundo foi feito exclusivamente para o seu deleite e que as outras pessoas existem para satisfazê-los ou serem humilhadas, caluniadas e difamadas se se recusarem a fazer o papel de fantoches facilitadores das suas fantasias megalomaníacas.

O que se viu nas redes sociais em 2016 é apenas a expressão da distorção de valores criada por uma cultura que se baseia no mito do cavaleiro solitário, que vibra quando o herói salva o cachorrinho ignorando as centenas de milhares de vidas perdidas no grande cataclismo do qual ambos escapam ilesos pelo milagre de uma trucagem razoavelmente bem feita para simular a realidade na ficção. Uma cultura baseada na competição a qualquer custo, doa a quem doa; na esperteza, na malandragem, em levar vantagem em tudo, na impunidade.

Enfim, chega de 2016, porque qualquer ser humano minimamente consciente sabe bem do que estou falando, e aos inconscientes não adianta falar: eu poderia escrever uma Bíblia e ainda assim eles entenderiam qualquer outra coisa que lhes agrade mais.

O que eu quero dar aqui é a chave não só para 2017, mas para os próximos 36 anos. E isso é muito importante particularmente para as pessoas que não estarão aí para aproveitar o ciclo de Vênus, ou a bonança que virá depois. Se lá atrás, na década de 80, tivéssemos optado pela oitava superior das vibrações solares, os próximos 36 anos seriam de paz, fartura e consolidação de um novo projeto de humanidade apoiado por toda a tecnologia desenvolvida desde meados do século passado. Mas optamos pela oitava inferior descrita no primeiro parágrafo e a colheita é tudo isso que está aí e que não podemos mais ignorar.

Igualmente, não podemos mais ignorar nossa própria responsabilidade no caos no qual nos vemos inseridos. É hora de parar de projetar nos outros nossas culpas e defeitos, passar uma esponja com detergente no passado, despertar e disciplinar nossas consciências para buscar a oitava superior na qual devíamos ter ingressado coletivamente na virada do milênio.

Para isso, é preciso darmos individualmente o salto quântico para buscar o Grande Conhecimento que é tão simples como difícil de aplicar. Minha dica: começa com a respiração, com respirar funda e pausadamente pelo menos 10 vezes antes de reagir. Este é o primeiro passo para se tornar um agente no mundo, e não mais uma folha indefesa à mercê da correnteza criada pelas outras pessoas.

O caminho do Grande Conhecimento é ilustrar a virtude brilhante,
Amar as pessoas e repousar numa conduta perfeitamente boa.

Sabendo manter a quietude,
a pessoa é capaz de determinar que objetivo deve buscar.
Sabendo que objetivo deve buscar,
a pessoa é capaz de atingir a calma da mente.
Sabendo atingir a calma da mente,
a pessoa é capaz de obter êxito no repouso tranquilo.
Sabendo obter êxito no repouso tranquilo,
a pessoa é capaz de deliberar cuidadosamente.
Sabendo deliberar cuidadosamente,
a pessoa é capaz de colher o que realmente deseja.*

Que em 2017 você obtenha a quietude para seguir por si os passos da plena realização, criando em sua pessoa um centro de equilíbrio que irradie e contagie a todos ao seu redor.

Namastê.
_/\_

* I Ching - O Livro das Mutações, nota de Confúcio à linha 6 do Hexagrama 52 (Gen - Quietude)

18 de fev. de 2016

MARA E DEUS




Aquele teria sido um dia como outro qualquer, não tivesse Mara concluído que era Deus. Já devia ter desconfiado por causa dos pássaros, mas diabos, era Deus e não Einstein. “Daqui em diante os dias têm que ser sempre especiais” pensou “é assim que deve ser quando se é Deus”.

Mas logo descobriu que isso só não adiantava: os dias continuaram lerdos e cinzentos. E Mara concluiu que para ser Deus também precisaria parecer Deus. Os desenhos que encontrou em livros e na internet não ajudaram muito: não queria de uma hora pra outra virar um velho barbudo e rebugento, ainda mais com aquelas roupas e sandálias horríveis! Parecer com aquele Deus estava definitivamente fora de cogitação.

“Ainda assim tem os pássaros”.

Também havia as flores, os pequenos animais e, mais recentemente, algumas nuvens.

Com as nuvens, foi assim: outro dia ela chorou e o dia começou a chover. Ao acordar esquecida das lágrimas, o dia também esqueceu da chuva. Tentou chorar, só pra ver o que acontecia, mas não adiantou. Podia chorar daquele outro jeito, sem motivo algum, mas não conseguia chorar quando queria.

Decidiu rir, e isso foi bem mais fácil. “Como pode?”, perguntou-se “ser tão mais fácil sorrir do que chorar, quando é muito mais difícil ser feliz?”

Abriu o caderno de matemática desperdiçando horas preciosas para decifrar a lição. “Se fosse mesmo Deus” cutucava uma vozinha lá no fundo, “entenderr matemática ia ser mais fácil que dar um pum”.

Fechou o caderno contrariada: “E Deus, por acaso, precisa de matemática?”

Ligou a televisão e pelo resto da tarde esqueceu o assunto.

Às sete e vinte em ponto o perfume da mãe entrou pela porta da frente.

Sem nem perguntar como havia sido o dia, ela já veio reclamando da bagunça e mandando recolher os cadernos espalhados na sala. Mara sentiu ganas de usar seus poderes divinos, mas se conteve: Deus não perde seu precioso tempo com picuinhas.

Desligou a tv e deixou a sala sem o menor rastro de sua divina presença.

Às dez pras oito o perfume do pai chegou batendo a porta.

Às oito e quinze os três sentavam à mesa hipnotizados pela tv.

Foi quando Mara concluiu que Deus não devia assistir televisão: todas aquelas notícias horríveis só serviam pra lembrar que devia estar mais preocupado com a paz no mundo e o fim do aquecimento global do que com a cassata que esperava no freezer.

- O que você faria se fosse Deus? – perguntou de repente ao pai.

- Trocaria de carro, mandava meu patrão pro espaço e ia morar nas Bahamas – respondeu o pai sem vacilar.

- E você, mãe?

Dona Margarete respirou fundo, olhando para o teto.

- Bem... – começou puxando forte do fundo do cérebro – Não acho que fosse precisar de plástica nem de lipoaspiração... Assim, se eu fosse Deus ia ter todas as roupas e sapatos que quisesse... E também ia viajar, conhecer o mundo... Paris, Miami, Nova Iorque...! Ia ver tudo que é museu, ir à ópera... a Broadway... ai, tanta coisa!

Calada, Mara concluiu que seus pais não entendiam nada de ser Deus: o que eles queriam era ser ricos como o Onassis.

- E você, minha filha? – perguntou o pai.

- Eu?! – Mara dá de ombros – Não sei... acho que nada.

- Nada?

- É difícil ser Deus, porque qualquer coisa que a gente faça pode ter sérias conseqüências, então acho que de medo eu não ia fazer nada.

Nisso começou a novela, e todo o brasileiro sabe que novela é mais importante que Deus.
A empregada entrou e saiu como uma sombra sem sequer tilintar os pratos e talheres que recolhia da mesa. Mara a seguiu até a cozinha.

- Marialva, o que você faria se fosse Deus?

- Acabava com a miséria no mundo – foi a resposta imediata – E de quebra acabava com tudo quanto é bandidagem.

- E depois?

- Ah, depois eu ia dencansar. Que só dar conta de tanta miséria e bandidagem deve ser uma trabalheira danada.

- Mas, se acabar com a miséria e a bandidagem no mundo, pra onde é que elas irão? Porque se alguma coisa some num lugar, tem que aparecer em outro, porque nada deixa simplesmente de existir, exceto quando a gente morre, mas ainda assim fica a carcaça...

- Ora, bolas! – impacientava-se Marialva – Deus é Deus, ele dá um jeito.

- Mas, se você fosse Deus, que jeito daria?

- Sei lá – Marialva bateu com as mãos na água ensaboada da pia – Não sou Deus mesmo... mas que coisa... Sabia que pensar assim é pecado?

- Pecado? – repete Mara com assombro.

- É. – afirma Marialva secando as mãos no avental – Imaginar que a gente pode ser Deus é pecado, e dos grandes.

Mara podia ter respondido que sendo ela própria Deus, não era pecado algum, mas deixou por isso. Naquele momento Deus decidira que estava com sono. O mundo que esperasse.



Na manhã seguinte, Deus acordou atrasado para a escola, porque mesmo cansado e sendo Deus, não conseguiu pregar o olho antes das 4 da manhã.

Engoliu um copo de Nescau enquanto vestia o uniforme e correu até a parada do ônibus.

Indiferente à presença divina, o coletivo passou batido, cuspindo gente pelas janelas. Mara teve ganas de gritar uns palavrões, então ocorreu-lhe que sendo Deus, não precisava de ônibus. Podia simplesmente parar o tempo, ou fazer que passasse mais devagar e assim ir andando até a escola e aproveitar cada detalhe daquela manhã radiante.

Deus chegou na escola depois do recreio, e com isso, ganhou um bilhete nada amigável para ser assinado pelos pais.

“Acabei esquecendo de parar direito o tempo...”, pensou. “Ou, quem sabe, estivesse tão ocupado com coisas mais importantes. .. Afinal, Deus está em todas as partes e ao mesmo tempo, mas não tem como a cabeça estar em mais de um lugar...”

- Querem ficar calados, pelo amor de Deus? – gritou a professora de português interrompendo o raciocínio de Mara justo quando chegava a essas conclusões importantes.

- Não entendi, professora... – Mara levanta a mão – Quando é que Deus lhe deu o direito de barganhar em seu nome?

A classe explode em gargalhadas.

Logo, Deus ganhava um segundo bilhete ainda menos amigável para ser assinado pelos pais.

- Eu não entendo... – Mara argumentara ao diretor, que por ser padre devia ter muita experiência nessas coisas sacras – Não foi o próprio Deus quem disse “não usareis meu nome em vão”?

Padre Manfredo teve que sorrir:

- É que não levamos as coisas assim, no pé da letra...

- Mas sempre esperam que Deus leve, não é?

O diretor fechou a cara, rabiscou alguma coisa no bilhete e a mandou esperar no corredor.
Enquanto esperava, Deus ficou sentado na secretaria pensando. E quanto mais pensava, mais concluía que as pessoas não levavam Deus tão a sério quanto parecia. Afinal, a qualquer coisa que acontecia exclamavam “Deus me livre!”, um grande rebuliço era sempre um “Deus nos acuda”, sempre que se despediam, era “vá com Deus”, como se Deus fosse um chaveiro, um celular ou um cartão de crédito “não saia de casa sem ele”... E Deus isso, Deus aquilo.... Ela é que não queria ser mandada de lá pra cá por qualquer bobagem... Mas o pior era o “meu Deus”... Ora, e lá Deus era propriedade de alguém?

A cigarra tocou, e Deus foi mandado de volta à sala de aula.

- Por sua causa, aquela bruxa mandou a gente ler todo o capítulo pra semana que vem, e já avisou que vai ter prova!

Aquela não era a vontade de Deus.

Saindo da escola ao meio-dia, resolveu caminhar de volta também. Entre a casa e a escola havia pelo menos umas três igrejas, um centro espírita e um terreiro de umbanda. Decidiu espiar se estava por lá.

O primeiro templo era uma sala comercial adaptada para acomodar um monte de pessoas sentadas em longos bancos perfilados à esquerda e à direita. Ao fundo, uma escrivaninha coberta por uma pano branco fazia as vezes de altar. No canto, uma bateria, microfones e amplificadores misturava-se a uma barafunda de fios remendados. Um sujeitinho moreno e atarracado, enfiado num terno barato a recepcionou do fundo da sala:

- Ah, uma jovem fiel! O quê a aflige, minha filha?

- Nada. – mentiu Mara – Só entrei pra olhar. Gostei da idéia da música.

- Então volte às sete, que é quando temos nosso culto... – convida o homem – É muito bonito: todos cantamos em louvor a Deus.

- Ótimo! – exclamou Mara se retirando.

- Espere! – exclama o homem entregando um folheto – Leve isto, e vá em paz, minha filha.

Ó Deus de Abraão, de Jacó e de José
Tua Luz nos traz justiça
Confirmando a nossa fé
Por isso aqui estamos e erguemos nossa voz
O Senhor é meu Pastor
Dize e responderei

Deus seguiu então para o segundo templo, bem mais requintado e luxuoso que o primeiro. Logo à entrada, à guisa de recepção, numa caixa de acrílico transparente cheia de notas e moedas lia-se a inscrição “dízimos aqui”. Um pequeno grupo de pessoas se espalhava pelos bancos contemplando as paredes lisas com olhares vazios. Uma mesinha no canto disponibilizava panfletos impressos perfeitamente organizados em pilhas com impressões em cores diferentes. Deus pegou um azul.

SINAIS DA SEGUNDA VINDA
Jesus Cristo Voltará à Terra
O Salvador disse a Joseph Smith: "Eu Me revelarei com poder e grande glória (...) e (...) habitarei com os homens na terra por mil anos, e os iníquos não permanecerão." (D&C 29:11; ver também capítulos 43 e 44, "A Segunda Vinda de Jesus Cristo" e "O Milênio".) Jesus nos disse que certos sinais e acontecimentos irão prevenir-nos quanto à proximidade de Sua segunda vinda, também chamada de "o grande e terrível dia do Senhor" (D&C 110:16).

Assombrado, Deus seguiu a leitura:

Os Lamanitas Tornar-se-ão um Grande Povo
O Senhor disse que quando Sua vinda estivesse próxima, os lamanitas se tornariam um povo reto e respeitado. "Mas antes que venha o grande e terrível dia do Senhor (...) os lamanitas florescerão como a rosa" (D&C 49:24). Grande número de lamanitas da América do Norte e do Sul e do Pacífico Sul estão hoje recebendo as bênçãos do evangelho.

E mais adiante:

O Conhecimento dos Sinais dos Tempos Pode Ajudar-nos
Ninguém, exceto o Pai Celestial, sabe exatamente quando o Senhor virá. O Salvador ensinou a esse respeito ao contar a parábola da figueira. Ele disse que, quando vemos a figueira soltando folhas, sabemos que o verão está próximo. Da mesma forma, quando virmos os sinais descritos nas escrituras, saberemos que Sua vinda está próxima (ver Mateus 24:32-33).
O Senhor deu esses sinais para ajudar-nos. Podemos, dessa forma, colocar nossa vida em ordem e preparar a nós próprios e a nossa família para o que ainda está para vir.
Não devemos preocupar-nos com as calamidades, mas esperar com alegria a vinda do Salvador. O Senhor disse: "Não vos perturbeis, pois, quando todas estas coisas (os sinais) acontecerem, sabereis que as promessas que vos foram feitas se cumprirão" (D&C 45:35). Ele disse que os que forem retos não serão destruídos quando Ele vier "mas suportarão o dia, e a terra ser-lhes-á dada por herança (...) e seus filhos crescerão sem pecado (...) pois o Senhor estará em seu reino, e a Sua glória estará sobre eles, e ele será o seu rei e o seu legislador" (D&C 45:57-59).

Discretamente, Deus surrupiou um exemplar de cada cor, enfiou na mochila e saiu dali sem pagar o dízimo.

A terceira parada foi num prédio cinzento onde se entrava subindo uma enorme escadaria. O interior era escuro e frio, e as paredes decoradas com uma profusão multicolorida de pinturas e estátuas competindo pela atenção com os vritrais das janelas em arco. Como nas anteriores, longos bancos se alinhavam perfeitamente, mas este templo tinha seis fileiras que convergiam numa abóbada dourada dominada pela fantasmagórica figura de um enorme cristo ensanguentado suspenso por fios de náilon. Num canto logo à esquerda, duas velhas ajoelhavam diante de dezenas de velas. Dali é que vinha o cheiro rançoso de parafina.

Curioso, Deus seguiu pelo tapete vermelho até chegar a cúpula dourada. À esquerda e à direita, reparou na riqueza dos entalhes das casinhas que abrigavam as imagens coloridas em dourado, vermelho, cinza e branco. Intrigado, Deus subiu os cinco degraus que colocavam a cúpula meio metro acima do resto do lugar. Uma mulher austera apareceu do nada para arrastá-lo escada abaixo:

- Não tem respeito? – ralhou.

- Por quê? É proibido? – perguntou Mara confusa.

- Os passos dos fiéis páram ao pé da escada.

- E Deus, pode?

- É onde ele mora.

Deus ficou parado, boquiaberto enquanto a mulher subia os degraus resmungando:

- Essas crianças de hoje... Não têm respeito por nada!

Deus observou a cúpula tentando encontrar o seu quarto. A única coisa com alguma privacidade era uma pequena capelinha dourada, trancada à chave. Mas ele é que não ia querer morar numa casinha tão apertada, ainda mais ficar trancafiado daquele jeito, sem poder sair quando quisesse!

De saída, recolheu um panfleto impresso em tinta cor de laranja.

Eu, pecador, me confesso...
... Tende piedade de nós

cântico de entrada:

A ti meu Deus cantemos os homens louvor
Ao teu amor respondam com mais amor
Senhor a tua igreja somos nós
Numa só voz
É teu tudo que somos e o que temos
E aqui vimos para adorar
Senhor, a graça imensa de viver
Sem merecer,
A graça de ser filho e de te amar
Vamos louvar
E agradecer
Da culpa tantas vezes repetida
Em nossa vida,
Senhor, a tua Igreja militante
Quer neste instante
Pedir perdão
Senhor, no sofrimento e na alegria
De cada dia
Ajuda-nos a amar o que é melhor
E o teu amor
Aumente em nós

Deus saiu dali perguntando-se o que aquela gente fizera de tão horrível, e o que ele fizera para merecer tanta gratidão. Do que estavam falando? Ele ainda não fizera nada, era Deus só a uns dois dias... Ou será que já era Deus antes de saber? Talvez antes fosse Deus em outra pessoa, e era ela só há pouco tempo. Se fosse assim, sabe-se lá o que tinha feito antes... Deus é que não sabia.

Esses pensamentos foram esquecidos ao chegar à porta do prédio baixo e mal conservado onde dezenas de pessoas humildes se espremiam, algumas tão doentes que mal conseguiam parar em pé. Quando Deus já ia entrando, um homem magro de terno e sandálias advertiu:

- Tem que esperar na fila.

Deus entrou na fila e esperou. Aos sussurros, as pessoas contavam dores e mazelas mazelas. Deus esperou por mais quinze minutos, mas como a fila não andava decidiu deixar para outra hora. Àquela altura já eram duas e meia e Marialva devia estar subindo pelas paredes.

Mas tinha ainda uma última parada.

Entrando por uma viela lamaçenta, chapinhou até um casebre reformado com as paredes caiadas de branco.

- Está fechado. – anunciou uma velha gorda debruçada na janela de um barraco logo à frente ainda antes que Deus tocasse a grade do portão – Se quer serviço, bote num envelope com o nome, o pedido e o dinheiro.

Deus catou na mochila uma nota de 1 real, e demorou para rabiscar um pedido numa folha do caderno. Dobrou cuidadosamente a folha com o dinheiro dentro e ficou esperando.

- Bota aí, na caixa do correio. – disse a velha sumindo por trás da cortina floreada.

No último instante, Deus mudou de idéia. Guardou a folha dobrada com o dinheiro e voltou chapinhando até a avenida.

Como era de se esperar, Marialva estava subindo pelas paredes:

- Por onde andou, menina? Tem idéia do susto que me pregou? De onde é que saiu esse barro todo? Agora eu é que vou ter que lavar!

Mara quase respondeu que não cabe aos mortais questionar os caminhos de Deus, mas achou mais prudente largar a mochila no quarto e esperar enquanto o almoço esquentava no microondas.

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imagem: “The Child Grew Strong in Spirit”, por Ann Guerri