2 de jul. de 2015

RATOS NO PORÃO


Rato é coisa braba: só depois de ver o primeiro é que a gente descobre que a casa está infestada - provavelmente há anos.

Podemos reagir de várias maneiras - minha experiência é que elas seguem esta ordem:

Primeiro, superado o horror, a gente tenta se convencer que era só um, e que entrou na nossa casa por acidente. Afinal, a gente não mora em nenhuma pocilga, né?

Mas ficamos alertas: inspecionamos cuidadosamente as embalagens dos gêneros antes de usar, damos uma geral na despensa, compramos latas para acondicionar tudo que possa atrair os roedores e, confiantes na nossa capacidade de lidar com a situação, seguimos em frente com o que quer que esteja ocupando nossa atenção no momento.

Mas a lembrança daquele rato não nos abandona. Acordamos no meio da noite ouvindo ruídos estranhos na casa. Prendendo a respiração, nos esgueiramos até a cozinha, agarramos uma vassoura e acendemos a luz de sopetão... nada!

Voltamos para a cama rindo de nós mesmos. Na manhã seguinte, reparamos que metade das bananas foi roída durante a noite.

Nojo, fúria, frustração e raiva, muita raiva: como pudemos ter sido tão idiotas de deixar as frutas ao alcançe daquele monstro?

Nesse espírito, decidimos encontrar o diabo do rato nem que seja preciso colocar a casa abaixo. Arregaçamos as mangas e começamos pelos locais mais óbvios.

Ao movermos aquela caixa de papelão cheia de cacarecos que já deveríamos ter posto fora há anos, o cheiro da urina e fezes nos faz recuar nauseados. Colocamos uma máscara de dentista, e limpamos o local só para nos depararmos com a mesma cena por trás do armário, da cristaleira, do fogão... onde quer que olhemos, encontramos os vestígios, nunca o rato.

Mas sabemos que ele está aqui. Mais: sabemos agora que não é só um, que são muitos, e que certamente já estão aqui há muito, muito tempo. Tanto tempo que nunca saberemos desde quando, como, porquê e quantos são.

Envergonhados, tratamos a questão como um segredo sujo. Afinal, todos acreditamos que em casa limpa não entra rato. E tentamos resolver sozinhos o problema quando justamente o que deveríamos fazer é buscar imediatamente a ajuda de algum exterminador de pragas, de um especialista.

Podemos perder o resto das nossas vidas armando arapucas e ratoeiras convencidos que se pegarmos um a um, eventualmente acabaremos com a praga. É a ilusão de controle. E não vai adiantar. Na verdade, é muito pior, pois só vai perpetuar o trauma de termos que lidar com cada vez mais cadáveres esmigalhados em poças de sangue que teremos que limpar sozinhos. Pode ser que com o tempo a gente crie como que uma crosta emocional que nos impeça de sentir aquele horror. A mesma crosta que vai nos impedir de sentir qualquer prazer na vida também.

Há quem depois do terceiro ou quarto rato morto decida ignorar e deixar que a casa se infeste até que os ratos percam a inibição de compartilhar da sua cama - e eles irão, pode ter certeza: se você deixar tudo como está, os ratos irão tomar até o seu travesseiro. Muita gente a essa altura, se deprime a tal ponto que nem sente quando os ratos começam a devorar suas extremidades e vai morrendo aos poucos, se esvaindo no próprio sangue. Outros enlouquecem e tocam fogo na cama e queimam junto com os ratos. Com sorte, algum bombeiro evitará o pior. Com sorte, sairão com queimaduras leves. Muitos, no entanto, ficarão tão deformados que mal se reconhecerão no espelho pelo resto da vida.

Há quem depois do terceiro ou quarto rato morto decida dedetizar a casa por conta própria, e acabe se envenenando a cada alimento que levar à boca, a cada roupa que trocar, a cada vez que deitar entre os lençóis. Ou exagere na dose inicial, e caia intoxicado no meio da cozinha para só ser descoberto semanas depois.

Há ainda quem decida simplesmente abandonar a casa, faça as malas, bata a porta e se vá, deixando que os próximos inquilinos se virem com o problema. Muito bem, a maioria dos ratos ficou para trás, mas na pressa de encaixotar a mudança, alguns ratinhos podem seguir junto, escondidos no fundo das malas.

E há quem remova todos os gêneros, afaste todos os móveis, esvazie todos os armários, arrume cuidadosamente uma pequena mala de mão só com o essencial e saia, entregando a chave a um especialista para que proceda à erradicação de forma segura; retornando depois para arejar, limpar, organizar e então chamar o caminhão de mudança, porque seja como for, depois do primeiro rato aquela casa nunca mais será "segura" para si.

E, finalmente, há quem adote um gato (ou mais de um), ganhando assim não só a proteção atenta como a amorosa companhia de um amigo confiável com quem compartilhar o aconchego nas noites de inverno.

Por quê falei de ratos? Porque com a mentira é a mesma coisa.

22 de fev. de 2015

SÍNDROME DO DÉFICIT DE NATUREZA



Um galho inteiro do plátano em frente ao meu vizinho despencou estrepitosamente momentos atrás, me arrancando dos braços de Morfeu.

Em seu abandono, os velhos plátanos crivados de parasitas vão aos poucos se desfazendo de membros inteiros na luta pela sobrevivência.

Neste conglomerado humano, asfalto e concreto são as únicas prioridades.

Alguns instantes depois vi esta foto no Facebook.

A primeira coisa que me saltou aos olhos foi o contraste entre a sensação de liberdade, a pulsação de vida que a presença desse horizonte aberto despertou dentro de mim e a opressiva sensação de confinamento causada pelo que a vista de minha janela (e olha que sou privilegiada por ter uma praça logo do outro lado da rua), que me sujeita a um modelo de urbanização que não só permite como incentiva que o concreto se erga como uma muralha sequestrando o horizonte para disponibiliza-lo apenas a uma minoria por um preço adicional - ainda assim é questionável a qualidade do "horizonte" oferecido, já que a esta altura só mostra a proliferação desordenada do cancro de concreto e asfalto em todas as direções.

A felicidade se alimenta da beleza, e a beleza na mídia é como fast-food: enche os olhos mas não nutre a alma.

Não bastasse isso, a ausência de um horizonte, de alguma coisa bela e perene à distância priva-nos da noção de dimensão, de perspectiva.

Desenvolvemos uma visão míope da vida.

Sem perspectiva, sem dimensão, nosso modus vivendi et operandi é o imediatismo.

Imediatismo não é "viver no momento", como a propaganda gostaria que você acreditasse. Não é carpe diem, porque é muito mais frustrante do que prazeiroso.

Não é o Wu Wei, porque seu método de ação é projetado externamente, voltado a moldar o ambiente ao indivíduo,  e não uma ação interna de transcendência dos fatores externos. Mesmo a falácia pseudo-zen do pensamento positivo e das manifestações é uma negação do Wu Wei, configurando via de regra apenas um retrocesso ao pensamento mágico da infância.

O imediatismo é a negação do Tao, o "Caminho"; e nisso, a negação do próprio universo no qual nos inserimos como uma mísera partícula de fóton, se tanto.

É viver num frenesi unidimensional, buscando resultados imediatos para problemas imediatos, sem nenhuma perspectiva passada ou futura, logo, sem nenhuma solução de continuidade.

Enclausurados entre as muralhas das nossas cidades, alienados da dimensão e perspectiva da Natureza - nossa referência mais próxima do Universo; fantasiamos ter criado um todo à parte, como se a Terra fosse uma bolha suspensa no vácuo onde imitamos os deuses do Olimpo, entretendo-nos com jogos de guerra e poder; quando uma tempestade solar de significativa magnitude (que um dia virá com certeza) é o que basta para nos pulverizar em segundos.

Sem a menor perspectiva da dimensão cíclica da natureza, mentimos, roubamos, chantageamos, manipulamos, prejudicamos, exploramos e chegamos a matar, como se os outros seres humanos não fossem mais que peões enfileirados para para serem dispostos conforme a vontade imediata em nossos tabuleirinhos de xadrez; quando um único meteoro com uma massa significativa (que um dia nos atingirá com certeza) é o que basta para que nada ou muito pouco reste da nossa empáfia.

Enfim, tudo isso para dizer que a única alternativa que vejo ao estado atual das coisas é um retorno á natureza: o que não implica absolutamente abrir mão da tecnologia de que dispomos mas antes adequá-la à promoção da vida e não da morte no planeta em todos os níveis.

A quem ainda não tenha lido, recomendo fortemente que procure, leia e releia Walden - A Vida nos Bosques, de Henry David Thoreau, publicado inicialmente em 1854 e hoje mais atual do que nunca. Este livro fornece todo o substrato intelectual para ajudá-lo a começar a visualizar alternativas práticas ao (comprovadamente fracassado) modelo de mundo em que vivemos.

Se não todas, boa parte das "síndromes", "distúrbios" e doenças em geral que afligem o homo-urbanus são meros sintomas de uma doença maior: a Síndrome do Déficit de Natureza.

Só existe um remédio para essa doença, e ele passa muito, mas muito longe da indústria farmacêutica. A cura começa ao se abrir os olhos e ver a ilusão pelo que é:

Controle imediato não é controle, é paliativo.

Poder imediato não é poder, é dominação.

Vida imediata não é vida, é sobrevivência.