7 de fev. de 2014

LEMBRANÇA INVENTADA



SE ME ALEMBRO BEM...

Era a senha.

As mãos trêmulas, de dedos nodosos e enrugados tateavam incertas os bibelôs na cristaleira, perfilados como recrutas diante da bandeira a tremular nos embaçados olhos descoloridos.

Com um suspiro, nos resignávamos, tamborilando dedos, rolando os olhos e distraindo os ouvidos com qualquer som que viesse de fora da janela.

Alheias à nossa falta de respeito, as pupilas cintilavam ao encontrar o objeto da súbita erupção mnemônica. A pele amarelada e áspera se fazia aveludada percorrendo carinhosamente cada minúcia do intrincado crochê enfeitado com miríades de miçangas coloridas.

Cada lembrança ele guardava assim. E a cada invocação, perdia-nos em devaneios acrescentando pontos e firulas.

Com o passar dos anos, os pequenos bibelôs se tornaram irreconhecíveis; e a coleção tão extensa, tão complexa, que ao buscarmos em nossas próprias lembranças não os associávamos mais.

Descuidamos dos sinais: o tatear incerto se fez trôpego, os nomes que se confundiam, as miçangas e crochês trocando de tempo e lugar.

E as pupilas baças... Ah, antes tivéssemos reparado! Mas não, mais preocupados em seguir os ponteiros do relógio do que as filigranas da sua narrativa, deixamos de reparar em como voltavam-se cada vez mais para dentro; e no quanto lhes custava retornar.

Ocupados em adornar nossos próprios bibelôs, nem reparamos quando os crochês e as miçangas desapareceram.

Então foram-se os bibelôs, e ele calou.

Hoje os olhos baços contemplam a cristaleira vazia, e é só.

Não nos dirige palavra nem olhar: nos ignora.

Partiu com seus bibelôs enfeitados para além do reconhecimento.


(foto: "Old Hands", por Alex Algo)

PRA LER E PENSAR


Abertura oficial das Olimpíadas de Inverno de Sochi, "as piores de todos os tempos" já antes mesmo de começar. Até aí tudo bem: as de Londres em 2012 já levaram o caneco, juntamente com Pequim (2008) e Atenas (2004). É que falar mal das coisas parece dar um IBOPE danado hoje em dia.

Mas a crítica à Sochi 2014 vem aditivada desde que a Rússia, ao publicar uma lei visando proteger suas crianças da sexualização precoce promovida pela (falta) de cultura disseminada pela mídia de massas, foi declarada inimiga mundial dos gays.

Intrigado com o fato, o repórter independente norte-americano Brian M. Heiss fez o que NINGUÉM na grande mídia, ou do público em geral, se deu ao trabalho de fazer: arregaçou as mangas e tratou de investigar. (Aqui a íntegra do documento.)

Ao invés de uma matéria, acabou escrevendo uma tese, que pode ser lida em sua íntegra (em inglês) aqui. São 73 páginas de bom jornalismo, aquele que mostra os fatos e estabelece comparações sem induzir nossas conclusões; mais 56 páginas de documentos legais - entre eles a Lei Federal "A Proteção das Crianças de Informação Danosa à sua Saúde e Desenvolvimento" aprovada em 24 de dezembro de 2010 sem que nenhum veículo da mídia internacional sequer fizesse menção - o furor só emergiu depois da Rússia punir algumas empresas dando a entender que a lei era mesmo pra valer.

Eu li a matéria e recomendo a todos que têm um cérebro e estão habituados a usar. Leituras como essa servem de antídoto para a doutrinação maçiça a que somos submetidos 24 horas por dia; revelando o princípio sórdido do lucro pelo lucro como imperativo universal de uma sociedade que não poderia se importar menos com suas próprias crianças, seu próprio futuro.

Resumidamente, a análise de Heiss indica que:

A histeria focou na expressão "proteger as crianças da propaganda de relações sexuais não tradicionais". Como se só as relações homossexuais fossem "relações sexuais não tradicionais".

De fato, se alguém neste mar de desinformação se desse ao trabalho de investigar antes de abrir a boca, iria descobrir que na Rússia o direito PESSOAL à opção sexual é garantido POR LEI desde 1993 - ela segue sendo CRIME em 12 estados norte-americanos.

Tampouco lá a opção sexual serve de base para a demissão - o mesmo não se pode dizer dos bastiões da democracia. Aliás, estatisticamente, os gays sofrem mais agressões e crimes de ódio nos Estados Unidos da América do que na Rússia.

Se é assim, então porque todo esse furor?

Simplesmente porque o alvo dessa lei são as grandes corporações, com seus produtos e propaganda que imbecilizam e sexualizam precocemente nossas crianças. É uma lei que foca no SHOW BUSINESS: 

"Esta lei, falando francamente, é mais endereçada ao show business. A lei se dirige à mídia de massa e ao show business. Esta é uma das leis no complexo de medidas que estão sendo tomadas no campo do show business.", afirma o deputado Alexei Mitrofanov.

Por quê?

Porque na Rússia o entretenimento é um mercado de 178 BILHÕES de dólares. São 1,2 bilhões de dólares só na venda de ingressos para o cinema, e mais de 10 bilhões de dólares em publicidade (dados de 2012). E a distribuição de videogames segue um ritmo de crescimento médio de 11% ao ano, devendo chegar a 1,8 bilhões em 2017.

Se o "show" da Beyoncé no Grammy tivesse acontecido na Rússia, a gravadora e os promotores do evento pagariam multas pesadas e a cantora, além da multa, ainda prestaria serviços comunitários por duas semanas.

E isso não interessa às grandes corporações, que "coincidentemente" controlam todas as gigantescas redes internacionais de notícias. Ainda mais num momento de estagnação, quando não de retração, de seus mercados tradicionais. Os únicos mercados em expansão somos nós, os emergentes.

O que concluo de tudo isso?

Precisamos acordar para o fato de que nosso bem-estar não é do interesse das grandes corporações. Que qualquer iniciativa para proteger princípios, ética e valores locais, ou que simplesmente interfira nos interesses econômicos das grandes corporações; será combatida com ferrenhas campanhas difamatórias de anti-propaganda, insuflando "manifestações"  que nada mais são do que eventos midiáticos orquestrados para gerar imagens emocionalmente impactantes para bloquear de antemão qualquer tentativa de argumentação racional. Quem assistiu ao filme sobre a Hannah Arendt sabe exatamente do que eu estou falando.

A essa altura do campeonato é imperativo compreender que a máquina do sistema de produção para as massas é um organismo que cresceu tanto em tamanho e complexidade que não comporta sequer uma mínima adaptação às especificidades de povos e culturas. Sua estratégia de sobrevivência é o gigantismo do rolo compressor que equaliza a todos dentro de uma margem pré-definida de gostos e valores.

Dentro desse sistema de produção em larga escala, pluralidade é sinônimo de prejuízo: mais que diversificar a linha de produção adequando-a a públicos diversificados, o sistema se dedica à erradicação da diversidade, moldando o público ao padrão pré-determinado de seus produtos.

2 de fev. de 2014

A VIDA NÃO É PARA SER LEVADA A SÉRIO


BOM DIA!!!

É um processo engraçado esse: nossa estréia na escola (seja no primeiro ano ou no pré) é sempre brindada com tintas, cantinhas, lápis, crayons... e dá-lhe pintar no papel, na cartolina, na lixa, no vidro, nas paredes até. Em casa, nossos se mostram orgulhosos e exibem nossas "obras" para familiares, amigos; e, mais recentemente, para o mundo todo pelas redes sociais.

Aí, a medida que a gente vai crescendo, as tintas vão sumindo da classe, até que toda a cor se resuma ao azul das canetas Bic. Se pegos desenhando em sala de aula somos corrigidos, reprimidos, as vezes até ridicularizados. Em casa, se passamos mais tempo ocupados com as tintas ou a música do que com as tarefas da escola, logo vem a reprimenda:

- Você não está levando nada a sério.

E segue a pressão por se buscar uma "profissão", como se arte fosse uma (des)ocupação inconsequente e infantil. E dá-lhe "aconselhamento de carreira" ("career coaching", nestes tempos chiques e modernos): "você precisa pensar no futuro", "não seja imprevidente".

"O trabalho dignifica o homem". Toda a arte é vista como ócio, como vagabundagem de quem não quer crescer e assumir responsabilidades nesta vida.

Em oposição, artista é aquele ser drogado, preguiçoso e estouvado que passa os dias dormindo e as noites se divertindo por aí.

E aos milhões, as cigarras despem-se das asas para virar formigas: o futuro Picasso vira arquiteto. O novo Mozart, engenheiro; e o jovem Hemingway, advogado.

Terno escuro, camisa branca, gravata, sapato engraxado (se for mulher, terninho e saia, camisa branca, meias de nylon e sapatos de salto alto); e lá nos vamos deslizando pelas esteiras de um sistema de valores e obrigações que vão se avolumando e ao mesmo tempo condicionando, tolhendo e forjando nossos caráteres para melhor nos encaixar no estereótipo mais apropriado à função.

Com sorte, alguns encontrarão satisfação na carreira escolhida, e olhando para trás sentir-se-ão felizes e realizados.

Com um pouquinho mais de sorte, chegarão mesmo a ser "bem sucedidos" (status via de regra aferido mais pelo crescimento do patrimônio do que pela qualidade do trabalho realizado) - o que não implica necessariamente em senso de realização e felicidade pessoal.

Boa parte vai ficar pelo caminho batida por um câncer, uma doença cardíaca, hipertensão, diabetes ou algum acidente ou morte violenta.

Muitos sobreviverão às doenças, perigos e aflições para chegar ao "futuro" - o almejado estado de graça livre do stress dos prazos, dos horários, da ansiedade de se estar sempre correndo atrás da máquina.

A imensa maioria chegará cansada, batida, vencida, derrotada; sem energia para mais do que vestir o pijama listrado e assistir a vida passar pela janela viciante da televisão.

Melhor seria terem levado a vida menos a sério, sido menos "previdentes", e vivido um pouco mais. Com menos distração e mais satisfação.