28 de dez. de 2012

PSICODELIA PURA


Coisas que a gente ouve tantas vezes sem pensar, até que um dia para, presta atenção e se surpreender:
 
Hello everyone.
I suppose you think that nothing much is happening at the moment.
Ah-ha-ha-ha-ha.
Well, that's what I want to talk to you all about; endings.
Now, endings normally happen at the end.
But as we all know, endings are just beginnings.
You know, once these things really get started, it's jolly hard to stop them again.
However, as we have all come this far, I think, under the circumstances the best solution is that we all just keep going.
Let's keep this going in sight, never an ending.
Let's remember that this world wants fresh beginnings.
I feel here, in this country, and throughout the world, we are crying out for beginnings, beginnings.
We never want to hear this word "endings".
I know we all want to sit down. I know you want to take it easy.
Of course we're looking for the good.
Of course we're looking for the fresh start.
Isn't that charming?
Do you know, I really feel I could dance.
Ah-ha-ha-ha-ha... Ah-ha-ha-ha-ha-ha... charming...
Ha-ha-ha...
Happy?
 
(Mike Oldield - Amarok; imagem: "Never Ending Road", fotomanipulação por Tyakarai: http://tyakarai.deviantart.com/)

27 de dez. de 2012

PARA CONSERTAR O MUNDO



Andava um famoso cientista às voltas com o imenso problema de consertar o mundo quando seu filho de sete anos irrompe em seu escritório oferecendo-se para ajudá-lo em seu trabalho.

- O papai está trabalhando para consertar o mundo. É muito trabalho para um homem pequeno como você. - explica o cientista tentanto dissuadir o menino.

- Mas eu quero ajudar, papai. Não é isso que a gente faz quando é família? Ajudar um ao outro? É o que a mamãe sempre diz.

- Sim, é verdade. A mamãe está certa. - rende-se o cientista com um suspiro.

- Então, como é que eu posso ajudar? - pede o garoto sorrindo orgulhoso.

- Deixa eu ver... - diz o cientista correndo os olhos pelas estantes apinhadas de livros como à busca de salvação.

É quando seu olhar recai sobre uma revista aberta sobre a mesa de trabalho onde vê impressa uma imagem do planeta Terra. Depois de ponderar por um instante, o cientista arranca a página desfazendo-a em pedacinhos que estende ao filho dizendo:

- Aqui. O mundo está assim, está vendo? Todo despedaçado, e nós precisamos colar os pedacinhos todos de volta no lugar. Você acha que consegue?

- Claro, papai! - exclama o menino aceitando os pedacinhos de papel rasgado.

- Certo. Aqui está uma folha de papel e um tubo de cola, pode começar. - diz o cientista limpando uma área da mesa para dar espaço ao menino - Você vai trabalhar aqui bem do meu lado e em silêncio, ok? Só vai me chamar quando tiver terminado.

Dito isso, o cientista volta a afundar-se em suas complexas equações deixando o menino sozinho para montar aquele quebra-cabeça. Pouco tempo depois, o menino avisa:

- Oh! - exclama o garoto a certa altura com tanta pungência que chama a atenção do pai.

- O que foi?

- Deu tudo errado. - lamenta-se o menino à beira das lágrimas.

Um tanto exasperado, o cientista larga mais uma vez o trabalho para ver o que acontecia.

- Mas o que que é isso? - pergunta ao ver o rosto sorridente de um homem num anúncio de pasta de dentes - Como é que isso foi acontecer?

- É que eu estava tentando montar o mundo como você falou, mas era muito difícil. Aí eu vi que tinha esse homem aí do outro lado, que era bem mais fácil de montar, e pensei que se eu colasse de volta os pedaços no rosto desse homem, eu ia montar de volta o mundo do outro lado da folha. Só não lembrei que o mundo ia ficar colado no papel que estava embaixo, e agora não dá mais pra ver se eu consertei o mundo ou não.

- Meu filho, você não só consertou o mundo da revista, como mostrou uma solução que tornou todo o meu trabalho uma brincadeira de criança. - diz o cientista erguendo a folha de papel contra a luz e mostrando ao menino.

Lá estava o planeta terra direitinho, por trás do rosto sorridente da pasta dental.

Ato contínuo, o cientista fechou todos os livros e cadernos em sua mesa, abriu as janelas do escritório e enquanto a brisa e o sol da manhã invadiam o recinto, convidou:

- Vamos brincar lá fora? Está um dia lindo demais para ser desperdiçado nesta sala fechada.

Antes de sair, pegou uma caneta e rabiscou sobre a pilha de livros e cadernos que recém fechara:

CONSERTEMOS O HOMEM E TEREMOS CONSERTADO O MUNDO!

6 de dez. de 2012

CENOURAS, OVOS OU CAFÉ?


Aos 29 anos, Laura sentia-se vazia e cansada. Por mais que tentasse, nada parecia dar certo em sua vida: cada vez que parecia ter resolvido um problema, outro aparecia para lhe tirar o sono e a paz de espírito. Com a auto-estima lá pelos dedões dos pés, resolveu visitar a avó, a quem não via a quase um ano.


- Estou tão cansada, vovó... minha vida não leva a nada, é tudo tão inútil, não sei mais o que fazer! Estou cansada, triste e com muita raiva! - desabafou aos prantos mal a avó abrira a porta para recebe-la.

Vó Amélia abraçou a neta até que se acalmasse, então convidou:

- Vamos até a cozinha?

Ainda soluçando, Laura seguiu a avó até a cozinha da pequena casa evocando ternas lembranças a cada cômodo por que passavam.

Chegando à cozinha, ao invés da chaleira, vó Amélia encheu uma panela com água e a levou ao fogo. Laura estranhou, mas não disse nada, entregue que estava a seus pensamentos conflituados.

Enquanto a água esquentava, ao invés do chá, vó Amélia jogou uma cenoura, um ovo e um punhado de grãos de café na água, então sentou numa cadeira a esperar em silêncio como se Laura nem estivesse ali.

Achando que a avó não estava regulando bem, Laura perguntou:

- O que você está cozinhando, vovó?

- Cenoura, ovo e café. - respondeu a avó com um sorriso.

Laura abriu a boca, mas vó Amélia com um gesto firme indicou que esperasse.

Quando o timer começou a tocar, vó Amélia desligou o fogo, retirou com cuidado a cenoura e o ovo colocando-os em seguida de molho na água fria e voltou a sentar à espera.

- Tome. - disse estendendo a cenoura a Laura depois de algum tempo - Tente quebrá-la.

Um tanto relutante, Laura pegou a cenoura e sem o menor esforço esmagou-a entre as mãos.

Vó Amélia então estendeu-lhe o ovo.

Laura pegou o ovo e apertou. A casca se partiu, mas o duro ovo cozido permaneceu intacto.

- Agora quero que prove isso. - disse a avó oferecendo a panela.

Laura aspirou o aroma do café,  provou um golinho e devolveu a panela.

- É café... - disse erguendo as sobrancelhas - Não estou entendendo...

- Me diga, minha neta: a água fervente é um estado natural?

- Não, claro!

- Para a cenoura, o ovo e o café, a água fervente é uma circunstância adversa, e cada um reagiu à sua maneira: a cenoura, que era dura e inflexível amoleceu e tornou-se fraca. O ovo, que só contava com sua frágil casca como proteção para o líquido em seu interior continou com a casca frágil, mas seu interior endureceu...

Vó Amélia fez então uma pausa, e tomando outra vez a panela nas mãos, aspirou longamente o aroma do café, então continou:

- Mas o café, ah este sim é único, pois depois de algum tempo na água fervente, ele mudou a própria água...

E foi com um olhar penetrante que parecia enxergar o fundo da alma da neta que vó Amélia perguntou:

- Qual dos três você escolhe ser?

(foto: senhora Beuchert em sua cozinha, Washington, 1917, fotógrafo desconhecido. Mais fotos históricas aqui

5 de dez. de 2012

NASRUDIN E A VELA




Nasrudin um certo dia apostou com as pessoas do vilarejo que conseguiria sobreviver a uma noite nas montanhas em pleno inverno sem fogo ou cobertas para se aquecer.

Aceita a aposta, munido de um livro e uma vela, ele partiu para as montanhas.

Pela manhã, enregelado a bater os dentes, Nasrudin voltou à aldeia indo direto coletar as apostas.

- Você tinha com que se aquecer? - perguntou o estalajadeiro, que apostara grande quantia contra Nasrudin.

- Nada. - redponde o Mulla.

- Nem mesmo uma vela? - insiste o açougueiro que também apostara uma boa quantia de dinheiro.

- Bem, eu levei uma vela para poder ler.

- Então perdeu a aposta! - decidiu o juiz, que como os outros também apostara bastante dinheiro.

- Pois bem... - Nasrudin deu de ombros se afastando sem argumentar.

Alguns meses depois, Nasrudin convida algumas pessoas para um jantar em sua casa. O estalajadeiro, o açougueiro e o juiz, entre outras pessoas se encontram na sala conversando e esperando a comida.

Horas se passam, e nada de comida. Nasrudin faz o melhor para entreter seus hóspedes, e tratando-se ele de um Mulla, ninguém ousa cometer a indelicadeza de interromper a prosa para indagar sobre o jantar.

Já passadas as onze horas da noite, Nasrudin convida:

- Vamos ver se o jantar já está pronto?

Todos se levantam seguindo-o à cozinha.

Lá, para surpresa geral, deparam-se com uma imensa panela cheia de água fria sob a qual ardia uma pequena vela.

- Oh, não está pronta ainda. - suspira Nasrudin - Não entendo: está no fogo desde ontem!

(imagem: miniatura de Nasrudin Hodja so século XVII, autor desconhecido)

3 de dez. de 2012

NÃO SE DEIXE LEVAR




No pequeno vilarejo habitado por humanos próximo à Grota do Fundão, morava um menino de 11 anos chamado Pedrinho, que não era nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, nem tampouco tinha muitos amigos.

Mas desde os cinco anos de idade, Pedrinho tinha um cão chamado Bóris, com quem adorava brincar. Entre as muitas brincadeiras, jogar bola era a preferida dos dois.

Um dia, brincando à beira do lago, Pedrinho jogou a bolinha com tanta força que ela foi parar dentro d'água. Ao ver Bóris seguindo sem hesitação para dentro das águas traiçoeiras, Pedrinho gritou e chamou, mas Bóris não lhe deu ouvidos e para total assombro do dono, seguiu correndo sobre a superfície da água, pegou a bolinha e trouxe de volta.

Pedrinho voltou a jogar a bola na água várias vezes, reparando maravilhado que Boris realmente conseguia correr sobre a água.

No dia seguinte, na escola, Pedrinho contou o feito a seus colegas, virando imediatamente motivo de chacota geral.

- Mas ele consegue correr sobre a água, sim! - insistia Pedrinho à beira das lágrimas.

- Além de burro, você também é mentiroso! - acusaram os outros meninos.

- Mas eu posso provar que é verdade! - insistiu Pedrinho.

- Então, prove. - desafiou Mané o fortão da turma - E se não for verdade, vou bater em você.

Ficou combinado então que naquela tarde mesmo todos iriam se encontrar no lago para ver o cachorro correr sobre a água.

A turma já esperava a algum tempo, quando Pedrinho finalmente chegou com seu cachorro.

Sem dizer uma palavra, Pedrinho jogou a bola no lago, e Bóris correu para dentro d'água. Calados, os outros meninos alternavam olhares entre a corrida de Bóris e a expressão indecifrável de Mané. E como Mané não mostrava espanto ou surpresa, guardaram para si o que quer que estivessem sentindo.

Com os olhos fixos em Bóris, como se disso dependesse toda a sua vida, Pedrinho não reparou em nada disso, só se voltando para os demais depois de ter a bolinha em suas mãos.

- Então, viu como o meu cachorro é especial? - perguntou Pedrinho ansioso.

- Tudo que eu vi é um cachorro tão inútil que não sabe nem nadar! - retrucou Mané dando as costas com desdém - Vamos embora, turma. Esse Pedrinho é mesmo um idiota.

E lá se foram Mané e os outros meninos. Só João, o garoto esquisito de quem ninguém gostava ficou para trás.

- Puxa, seu cachorro é fantástico! - cumprimentou João acariciando a cabeça de Bóris - Nunca vi nada assim!

Pedrinho nem olhou para João: com o peito apertado observava a turma se perder na distância aos empurrões e gargalhadas.

- É um cachorro idiota! - desabafou finalmente - Passa o dia todo correndo atrás de mim com essa cara de abobado e vive quebrando tudo na casa! Quer? Pode ficar com ele, é tão inútil como você!

- Ele só falou isso por inveja. - João tentou argumentar.

Mas Pedrinho não deu ouvidos: jogou a bolinha com toda a força para dentro do lago e enquanto Bóris corria para buscar, subiu em sua bicicleta, saindo em disparada.

Entristecido, João ficou olhando Bóris correr até o meio do lago, voltando em seguida com a bolinha. Ao ver que seu dono partira, Bóris não hesitou e com a bolinha entre os dentes saiu em disparada seguindo o rastro do dono.

Nos dias que se seguiram, Pedrinho não só não brincou mais com Bóris como passou a espezinhar o pobre animal.

- Pedrinho! Não é assim que se trata um bichinho de estimação! - repreende a mãe zangada ao vê-lo chutar o pobre cão.

- O Bóris não é um bichinho, nem é de estimação! - bradou Pedrinho - Eu odeio ele!

Vendo o cão definhar entristecido, os pais depois de muito conversar decidiram oferecê-lo para doação. Afixaram alguns cartazes na vizinhança e esperaram o resultado.

No dia seguinte, ninguém menos do que Mané e seu pai batem à porta da casa com um dos cartazes nas mãos.

Da janela de seu quarto, Pedrinho observou rancoroso quando Mané se afastou levando Bóris todo faceiro.

Na semana seguinte não se falava em outra coisa na escola: Mané tinha um cachorro tão fantástico que até conseguia andar sobre a água!

Zangado, Pedrinho foi tomar satisfações de Mané:

- Como é que agora o Bóris anda sobre a água quando você mesmo disse que ele era tão inútil que nem sabia nadar?

- É que o Bóris não era o MEU cachorro, mas agora é. - retrucou Mané com um sorriso desdenhoso.

(foto: Charlie, o boxer, por Rick Ehrenberg)

27 de nov. de 2012

YO, DJ!


Sabe aqueles dias que você acorda precisando chutar um balde?

Pois é, acontece comigo, e com frequência. Foi num dia desses que comecei a burilar essa perolazinha sonora aí. Foi assim:

Acordei de manhã cedo, cheia de amor pra dar, fui fazer o café, liguei o rádio e... TERROR!!! A empregada tinha esquecido de sintonizar de volta na minha estação preferida (99% notícias).

Passado o susto, ainda sentindo a agressão nos tímpanos, resolvi dar uma zapeada pra ver o que anda tocando por aí.

E eu que pensava que nada podia ser pior que televisão...

Como a gente só se recupera dos traumas com uma boa terapia, armada de uma garrafa de café comecei a dar forma a esse libelo. Como não queria que fosse mais um ranço elitista, virou essa belezinha aí.

Espero que vocês curtam, entendam a piada e se divirtam como eu estou me divertindo até agora!

25 de nov. de 2012

ESTOU MELHOR EM CASA




Mais um verão se aproxima. Com ele vêm as festas de final de ano e, é claro, as viagens de férias.

Ontem falando com uma conhecida aqui na praça eu disse que não gostava de viajar. Ela me olhou como se eu fosse verde e tivesse antenas.

Bom, admito que exagerei um pouco: eu gosto de conhecer lugares, pessoas e culturas diferentes, o que eu odeio é a parte do "transporte e acomodações".

Senão, vejamos:

Transporte por via terrestre pelas estradas do Brasil, vamos combinar, já devia ser considerado "tentativa de suicídio assistido".

Imagine um cardume com 400 mil peixes de vários tamanhos: lambaris, carás, traíras, dourados, cações, golfinhos e baleias (tá bom, tá bom: golfinhos e baleias não são peixes, mas é só um exemplo, ok?). No meio disso tudo, você um lambari. Agora pegue essa peixarada toda e bote pra nadar junta num riachinho projetado para acomodar três traíras lado a lado, num fluxo de coisa de 60 traíras por minuto e que se estende por uma centena de quilômetros (que é a parte que recebe mais fluxo da freeway). O que acontece?

Quase metade desse cardume é composta de lambaris e carás como eu e você nadando alegremente dentro do limite de velocidade e determinados a chegar ao nosso destino sem sofrer um ataque de apoplexia.

Mas aí vêm as traíras grudando nas nossas nadadeiras e piscando faróis alucinadamente como se fossem o Fernando Alonso a quatro pontos do Sebastian Vettel na última corrida da temporada. Não raro, são seguidos pelos cações ziguezagueando pelas faixas em rachas ensandecidos.

E tem as baleias e golfinhos que conforme o humor do momento podem mostrar-se gentis e cuidadosos ou aniquilar você numa fração de segundo. Ah, é, eles também podem se distrair por uma fração de segundo e sua vida de lambari já era.

E tudo isso pra se acotovelar numa praia apinhada fedendo a cerveja, fritura, milho cozido e bronzeador, levar umas vinte quilhas de prancha de surfe pela testa e passar as noites em claro por conta do ruidoso vai-e--vem das selvagens tribos adolescentes órfãs de pais, mães e inteligência, perambulando pela noite até depois do amanhecer, indo a todos os lugares sem chegar a lugar algum.

Mas tem a opção do transporte aéreo, com uma oferta de destinos mais "sofisticados" - infelizmente a coisa meio que pára por aí, já que os "modais" (ai, que palavra chique!) aquático e ferroviário não são considerados "economicamente viáveis".

O périplo começa já no aeroporto - esse curral chique onde o gado comparece vestido com roupas de festa.

Primeiro, exigem que você se apresente algo entre uma ou duas horas antes para fazer o tal check-in, que é uma das coisas mais idiotas de que já ouvi falar, afinal, você já teve a iniciativa de comprar e pagar pela passagem, só precisa mesmo despachar as malas, se as tem: é claro que pretende pegar aquele voo, daquela companhia, naquele portão e na hora marcada, e, pelo bom senso, a moça não precisaria imprimir ainda outro bilhete de passagem, bastava entregar um ticket com o numero da sua bagagem. Mas não, como um penitente, é preciso que prove à sua santidade a companhia aérea que está firme em sua vontade desperdiçando horas numa fila interminável para receber a bênção da mocinha no balcão. E nada de perder as estribeiras nessas horas, senão você corre o risco de ser tratado como "passageiro hostil".

Mas, espere, ainda não está liberado para seguir viagem. Para garantir que não representa uma ameaça à segurança mundial, você precisa ser vistoriado, inspecionado, apalpado e liberado para o tíutlo provisório de "passageiro", que lhe confere o direito de calar a boca e esperar (sentar depende da disponibilidade de assentos na sala de embarque) até que o conduzam por um brete estreito ventre do frangalhão onde será devidamente estocado num compartimento de cerca de 80cm² onde de bico sempre fechado deve esperar "até a parada total desta aeronave".

Com sorte, horas depois de ter desistido de ir ao banheiro porque não consegue desgrudar o corpo do "passageiro" ao seu lado, recebe de prêmio um copo de refrigerante ou suco choco e uma barrinha de cereais que só vão servir para secar ainda mais a boca e fazer sua bexiga quase explodir de vez.

Você só vai voltar a saber o que é "respirar a plenos pulmões" quando, depois de muita dificuldade e pedidos de desculpas, finalmente conseguir desgrudar dos corpos dos demais "passageiros", e surpreso por ainda poder mexer as pernas, seguir por outro brete estreito até o saguão onde deverá (outra vez) esperar rezando dois Pai Nosso e três Ave Maria para que sua mala não tenha sido roubada.

Com sorte, depois desse périplo, tudo que o espera é o abraço caloroso de amigos e familiares e alguns dias realmente felizes e agradáveis em sua companhia.

Mas se o destino é um desses lugares que "todo mundo tem que conhecer" como, digamos, Paris, aí tem outra rosca.

Se usou o serviço de uma agência de turismo ou fez reserva antecipadamente, você desce do bendito avião, caminha quilômetros até um ponto de táxi, paga os olhos da cara, e depois de muitas voltas (e você jurando que já viu aquela esquina umas trocentas vezes) chega ao "aconchegante" hotelzinho onde tem reserva.

Se não fez reserva, e não se aventura a dormir numa praça ou embaixo de uma ponte, pode ir ficando no aeroporto mesmo: os hotéis estão SEMPRE lotados.

Mas digamos que fez, e com meses de antecedência. Isso não faz a menor diferença: o azedume em pessoa ergue as sobrancelhas quando você se aproxima da recepção do hotelzinho de três estrelas, estende uma ficha e um punhado de chaves, anunciando: le petit-déjeuner est servi à partir de sept à neuf heures et la salle de bain est dans le couloir - sim, é um banheiro por andar.

Isso foi uma boa acolhida: daqui para a frente, prepare-se para ser xingado (en français), desdenhado (en français), pisoteado (en français), empurrado (en français), ignorado (en français)enganado (en français) e roubado (en français), e não importa se o cara é argelino, marroquino, iraquiano ou francês mesmo - ils parlent tous français.

E é levado (toujour en français) a entrar na fila pra visitar todos os lugares onde todo o turista vai  para ser xingado (en français), desdenhado (en français), pisoteado (en français)empurrado (en français), ignorado (en français)enganado (en français) e roubado (en français).

Falei de Paris, mas podia ser Roma, Miami, Londres ou qualquer outro "destino" à sua escolha. Há exceções para confirmar a regra: em Tóquio e Nova Iorque você não precisa se preocupar muito em ser xingado, pisoteado, empurrado, enganado e roubado (desde que não pegue o metrô): lá todo mundo simplesmente se ignora.

A isso tudo, prefiro ficar em casa e viajar na música, nos livros e nos filmes que me dão muito, mas muito mais prazer.

(foto: fila de turistas em Versailles, por Anna Strumillo)

22 de nov. de 2012

A LISTA DE MENDES




Mendes nasceu Aristides. Mais precisamente, Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches, em Cabanas de Viriato, Distrito de Viseu, Portugal.

Por parte de mãe, era bisneto por bastardia do 2º Visconde de Midões e descendente do 2º Conde de Avranches. Por parte do pai, o lado Sousa da família, era de origem judaica, descendente de Madragana Ben-Bekar, uma linhagem que remete direto, sem escalas, ao Rei Davi de Israel. Além disso,  de Madragana sabe-se ter tido filhos com El-Rei D. Afonso III, mas isso é outra história, pois não consta que Aristides provenha desse ramo da família.

Aristides nasceu com um irmão gêmeo idêntico de nome César. Muito unidos, os irmãos cursaram Direito em Coimbra e seguiram a carreira diplomática.

Aos 24 anos, contraiu núpcias com Angelina Amaral de Abranches, prima em segundo grau e no ano  seguinte, 1910, é nomeado para o consulado de Demerara, na Guiana Britânica. Entre 1911 e 1926, foi cônsul portugues em Zanzibar (Tanzânia), Curitiba, São Francisco (EUA) e São Luís do Maranhão (alternando com Porto Alegre). Em 1926 assume a Direção Geral dos Assuntos Comerciais e Diplomáticos em Lisboa. Segue-se a revolução e ele é demitido por ser monarquista. Reintegrado em 1927, segue para Vigo, na Espanha. Em 1929 é nomeado para a Antuérpia, com acreditação para Luxemburgo. Fixa residência em Leuven, na Bélgica.

Nesse período, uma tragédia familiar, mais precisamente no ano de 1934: primeiro o segundo filho mais velho morre logo após a colação de grau na Escola Diplomática. Seis meses depois, a menina mais jovem morre aos 17 meses.

Em 1938, o presidente António de Oliveira Salazar o nomeia para o consulado de Bordeaux, na França, com jurisdição sobre os sub-consulados de Bayonne e Hendaye.

Em 1939, como se sabe, a Alemanha invade a Polônia. Inglaterra e França declaram guerra ao regime nazista. Vendo a guerra aproximar-se, Aristides envia os filhos menores de volta para Portugal.

Nesse mesmo ano, em novembro, o ditador António de Oliveira Salzar emite a Circular 14, que determina entre outras coisas que os cônsules de carreira não poderão conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério aos estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, aos apátridas, aos portadores de passaportes Nansen e aos russos; (...) àqueles que apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provêm; aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde provêm.

Por que o faz?

Toda a guerra provoca uma onda de impacto que empurra populações afetadas em correntes migratórias para todas as direções possíveis. Com a Alemanha e a Áustria no centro da Europa, tendo a leste a Rússia de Stálin, as rotas de fuga apontavam para o Oeste. O avanço nazista nunca pretendeu ser meramente um movimento de ocupação. Seu objetivo era o extermínio sistemático, a erradicação de toda e qualquer etnia ou grupo que não se encaixasse perfeitamente no modelo ideal de uma raça "puramente ariana". Era portanto imperativo aos nazistas bloquear essas correntes, preferencialmente em currais onde o extermínio fosse mais eficaz.

Da Espanha, o "generalissimo" Franco, que recebera apoio dos nazistas durante a Guerra Civil Espanhola de 1936 a 1939, responde prontamente proibindo a emissão de vistos para refugiados ao mesmo tempo que hipocritamente adotava uma posição de neutralidade no conflito.

Sabendo da delicada posição diplomática de Portugal, cujo presidente e também ditador Salazar ao mesmo tempo que simpatizava com o regime nazista adotara uma posição de neutralidade por força da mais antiga aliança diplomática de que se tem registro na História, o Tratado de Windsor, datado de 1373 e renovado em 1642 e 1703; e muito provavelmente buscando colocar os lusos numa posição de fragilidade perante os nazistas, o que lhe facilitaria a assimilação do território português num possível futuro III Reich; Franco permitia a passagem de refugiados por seu território, se portadores de um visto português.

Restava a Portugal agradar a gregos e troianos ou, mais provavelmente, desagradar a todos.

Findo o rigoroso inverno de 1939-40, os alemães retomam a ofensiva, ocupando Holanda, Bélgica e Luxemburgo em maio. Em junho chegam a Paris. Pétain estabelece um governo da resistência em Vichy, seguido por centenas de milhares de refugiados franceses e de várias nacionalidades que haviam fugido para a França. O avanço das tropas nazistas os empurra para mais adiante, para Bordeaux.

E é justamente em Bordeaux que se encontra Aristides, num prédio praticamente sitiado por refugiados implorando por um visto português. A cada audiência, em obediência à Circular 14, Aristides envia um telegrama para Lisboa. Mas nunca recebe uma resposta: o governo português está visivelmente ganhando tempo, contando com a chegada dos nazistas para que o "problema" seja arrancado de suas mãos.

É quando Aristides perde a paciência. Judeu marrano, o descendente de Madragana Ben-Bekar, aquela que teve filhos com El-Rei D. Afonso III vai à janela do consulado e anuncia em alto e bom som:

"A partir de agora, darei vistos a toda a gente: já não há nacionalidades, raça ou religião".

Nos dias que se seguem, o consulado trabalha das oito da manhã até as três da madrugada expedindo vistos. Quando acabam os formulários, Aristides passa a usar folhas de papel em branco onde carimba o selo do governo português.

Os nazistas continuam seu avanço, forçando Aristides a relocar-se primeiro em Bayonne, e finalmente em Hendaye já na fronteira com a Espanha. Tendo esgotado os formulários nas três sedes sob sua jurisdição, Aristides passou a escrever de próprio punho:

O Governo Português pede ao Governo Espanhol que autorize o portador do presente visto a atravessar livremente o território espanhol. Esta pessoa é uma refugiada do teatro de operações europeu em trânsito para Portugal.

Chamado de volta a Portugal por emissão excessiva de vistos, Aristides cruzou a fronteira liderando uma épica caravana de refugiados, muitos dos quais acabaram abrigados na propriedade da família, em Viseu.

Julgado em Lisboa, foi condenado por ter

(...) desonrado Portugal perante as autoridades espanholas e as forças alemãs de ocupação (...) e por ter ousado colocar os seus próprios imperativos de consciência à frente das suas obrigações de funcionário.

Aristides morreu pobre e desonrado num hospital de caridade da Ordem Terceira de Lisboa. Sua mortalha foi um hábito de burel dos franciscanos.

Em 14 de outubro de 1967, a Yad Vashem, organização israelita para a recordação dos mártires e heróis do Holocausto homenageia Aristides com a sua mais alta distinção: a medalha de ouro dos Justos das Nações, onde se lê a inscrição do Talmude "Quem salva uma vida humana é como se salvasse um mundo inteiro.

A censura salazarista impede que a notícia seja divulgada em solo português. O nome de Aristides só virá a ser mencionado na imprensa daquele país depois da Revolução dos Cravos. Sua história chegou aos cinemas em 2011 com o filme "O Conde de Bordéus", um drama luso-israelense.

Não há como precisar quantas pessoas Aristides teria salvado. O que se sabe por certo é que foram esgotados todos os formulários de que dispunham o consulado portugues em Bordeaux, e os sub-consulados de Bayonne e Hendaye.

Sabe-se que entre janeiro e junho de 1940, o consulado de Bordeaux emitiu 1.674 vistos - isto é o que está documentado no livro de contabilidade do consulado.

Como bem lembrado pelo Rabino Kruger, um dos refugiados salvos por Aristides, esses vistos não eram individuais, mas familiares, abrangendo grupos de até 20 pessoas.

Agora você faça as contas.

21 de nov. de 2012

COMO É QUE É, GENTE?




Como faço todos os dias, levantei relativamente cedo e fui fazer o café.

Depois de botar a chaleira no fogo (aqui em casa não entra cafeteira elétrica), descasquei metade de uma banana e botei no pratinho que tenho na sacada de casa para os passarinhos, voltei para a cozinha, liguei o rádio e fiquei escutando tomando meu suco de laranja e ouvindo o noticiário enquanto esperava a água ferver.

O correspondente em NY contava sobre alguém que morrera após ser pisoteado num corre-corre, de duas mulheres trocando tiros e sobre uma mulher que usara gás de pimenta para afastar outros compradores do produto que desejava comprar, no caso, um X-Box.

Como havia pegado o bonde andando e não estava prestando muita atenção, até chegar no X-Box eu não fazia a menor ideia do que se tratava.

Até então eu pensava tratar-se de gente desesperada lutando pela sobrevivência num campo de refugiados lutando pela sobrevivência em algum país remoto; de gente desesperada por comida, por água pra beber; tão desesperada que nem está pensando em desperdiçar água para o banho.

Mas não. Era sobre a tal da black friday.

Pelo nome, achei que fosse alguma coisa sinistra, mas o repórter explicou que black friday é na verdade um dia eleito pelo comércio para limpar os depósitos para a chegada dos produtos a serem vendidos no Natal.

Morte, violência e selvageria para gastar dinheiro em quinquilharias.

A chaleira ferveu enquanto eu assimilava essa ideia.

Passei o café e liguei meu pc para ler as notícias do dia:

Na Inglaterra, uma grávida de gêmeos e mãe de dois meninos se atirou de um penhasco para a morte porque estava esperando mais dois meninos quando tudo que queria na vida era dar à luz uma menina.

Na Espanha, o Ministro do Turismo se mostra "embaraçado" depois do vazamento de uma foto onde aparece todo sorridente ostentando como um chepéu os testículos de um cervo morto que recém abatera.

Na Suécia, uma mulher de 38 anos mantinha há meses em seu apartamento a ossada do companheiro, com que ainda mantinha relações sexuais: "quero meu homem vivo ou morto", justificou-se ao ser presa.

Homem corta matou a cunhada degolada em frente aos sobrinhos. Preso horas depois, confessou que o fez por "invejar o sucesso do irmão".

Aí tem um vídeo dessas câmeras de vigilância que andam espalhando pelas cidades. Ele mostra uma moça caminhando. Por trás dela, um homem se aproxima rapidamente, e do nada desfere um murro violento na nuca da garota e foge ainda antes que ela caia desmaiada no chão.

Isso alternado com 78 fofocas "exclusivas" sobre celebridades, artistas retratando celebridades com jujubas, do novo record mundial de 5 dias jogando videogame sem parar, bronzeador instantãneo feito de pós de diamante e vendido em embalagem de perfume caro; e o Papa que escreveu em seu livro que não tinha burro nem vaca no presépio quando Jesus nasceu.

E lá vou eu ruminando esse misto de tragédias, baboseiras, fofocas, pseudo-notícias tendenciosas e inutilidades, até me deparar com isso:

Depois do encurtamento dos dedos dos pés, a amputação cirúrgica de dedos mínimos é a nova febre entre mulheres adeptas do salto-agulha. "Nunca me senti tão bem sobre alguma coisa que tenha feito", proclama uma recém-operada feliz por se livrar do tormento de décadas de dores crônicas e calos nos pés.

Sim, isso está escrito e publicado bem ali, com todas as letras e tem até foto pra provar. Duvida? Segue o link.

Se bobear, vai ter quem ponha na prática o photoshop maluco criado por Richard Darell que ilustra este post. (Original aqui)

Por que diabos ainda me espanto com a estupidez humana?

Em tempo: não consigo parar de pensar na grávida suicida. Será que se tivesse vivido para ter sua tão ansiada filha menina essa menina ia usar salto-agulha também?

19 de nov. de 2012

O AMOR E O TEMPO





Era uma vez uma pequena ilha onde viviam os sentimentos.

Um dia Cautela anunciou que como a ilha estava prestes a afundar todos deveriam construir seus botes e partir o quanto antes.

Enquanto os outros sentimentos corriam a providenciar seus botes, Amor, Confiança e Esperança decidiram ficar até o último momento possível.

E, como Cautela advertira, a ilha foi afundando rapidamente. Vendo que não haveria mais tempo para construir seu bote, Amor começou a chamar por socorro, enquanto Confiança e Esperança se divertiam despreocupadas tecendo colares de junco.

Aproxima-se então a Riqueza em seu grande e sólido bote.

- Riqueza, podes me levar contigo?

- Não, não posso. Meu bote está carregado com meus tesouros, não há lugar para vocês três. Consigo levar Confiança, que não pesa muito. - responde Riqueza.

Sem hesitar, Confiança deixa os outros para trás, subindo no bote da Riqueza:

- Vocês vão ficar bem, tenho certeza disso! - exclama com um sorriso.

- Oh, espero que sim! - responde Esperança acenando despreocupada.

Ao fazê-lo, Esperança escorrega da pedra onde se equilibrava e não fosse o abraço forte do Amor, teria se perdido nas águas.

Eis que surge a Inveja remando seu bote, e ao ver o Amor tão fortemente abraçado à Esperança manobra o bote com violência afastando-se dali.

Logo atrás vem a Vaidade, e é a esta que Amor se dirige suplicante:

- Vaidade, por favor, ajude-nos!

- Nem pensar! - exclama vaidade - Molhados como estão vocês vão arruinar meu lindo bote!

Instantes depois, Tristeza se aproximava. Mais uma vez, Amor pediu por socorro:

- Tristeza, leve-nos com você!

- Oh, Amor... fosse só você eu até podia pensar, mas a Esperança só me traz mais infelicidade.

E dizendo isso, seguiu cabisbaixa flutuando sozinha em seu pequeno bote escuro.

Eis que se aproxima Alegria que de tão entretida consigo mesma nem reparou nos dois sentimentos à deriva fortemente abraçados um ao outro.

A noite caía e uma densa neblina se espalhou sobre as ondas encrespadas da maré. Lutando contra o mar agitado, Amor acaba deixando que Esperança lhe escape dos braços. Sozinho na escuridão, começa a chorar lamentando sua má sorte.

Eis que uma voz rouca o chama:

- Venha, Amor, vamos levá-lo.

- Eu perdi Esperança... - lamenta o Amor subindo ao bote.

- Não se preocupe, ela nunca está perdida. - consola outra voz.

Em silêncio, Amor observa as silhuetas encarquilhadas de seus salvadores a remar na quase total escuridão. Exausto, acaba adormecendo.

Um bom tempo depois é despertado pelo baque do bote contra a terra firme.

Em instantes, uma das figuras salta do bote afastando-se rapidamente. Pestanejando, Amor se dirige à velhinha que ficara sentada no bote como a esperar por sua saída para voltar ao mar:

- Desculpe-me, na confusão não perguntei seus nomes...

- Me chamo Sabedoria. - disse a velhinha - E aquele ancião que vai lá longe é o Tempo, meu irmão mais velho.

- O Tempo? - pergunta Amor assombrado - Por que veio em meu socorro, se nunca faz nada por ninguém?

Sabedoria alargou a boca em um largo sorriso de entendimento, então falou:

- Porque só o Tempo é capaz de entender quão valioso é o Amor.

(imagem: "Navio em Mar Tempestuoso",  por Ivan Aivazovsky)

13 de nov. de 2012

SVETLANA




Desde pequena Svetlana acalentara um único sonho, e uma grande paixão.

Sua paixão era a dança, a qual se dedicava de corpo e alma.

Seu sonho era ser uma gran ballerina no Ballet Bolshoi.

Conformados, seus pais já há muito haviam desistido de tentar interessá-la por outros assuntos, outras atividades. Os rapazes já nem arriscavam um olhar: o coração da bela Svetlana só tinha lugar para a dança, e tudo o mais era sacrificado pelo dia em que ela se tornaria uma bailarina no Ballet Bolshoi.

E tanto amor, tanta dedicação finalmente deram frutos: Sergei Davidovitch, mestre do Ballet Bolshoi estava selecionando novos talentos para a companhia. Recomendada por vários mestres e instrutores como um genuíno talento, Svetlana foi convidada para uma audição.

Nas semanas que antecederam à audição, Svetlana trabalhou até a exaustão, ensaiando cada detalhe, revisando os mínimos movimentos: sua apresentação seria perfeita custasse o que custasse: era sua única chance.

Finalmente chegara o grande dia. Tensa, mas determinada, Svetlana apresentou-se ao comitê de seleção, e sob o olhar crítico de Sergei Davidovitch, dançou como se fosse seu último dia na Terra, flutuando pelo salão com a leveza de um anjo e a precisão de um relógio suíço.

Ao final da apresentação, ainda ofegante, aproximou-se do grande mestre e perguntou:

- Então, o senhor acha que eu posso vir a ser uma gran ballerina?

A resposta foi tão avassaladora, que antes mesmo de ouvir o resultado da audiência, Svetlana retirou-se aos prantos. Entre lágrimas passaram-se os dias, os meses, e ainda anos depois, a ríspida resposta a assombrava como um pesadelo:

- Não. - dissera Sergei Davidovitch sem pestanejar.

E Svetlana sentira a terra sumir sob seus pés latejantes.

Num arroubo de frustração, jogara no lixo as sapatilhas, decidida a nunca mais tornar a calçá-las.

Mas com o tempo, o amor à dança falou mais alto. Tendo desistido do sonho de tornar-se uma gran ballerina, Svetlana conformou-se em ensinar, tornando-se uma professora dedicada e exigente.

Dez anos se passaram até que criasse coragem de assistir a apresentação anual que o Ballet Bolshoi promovia em sua região.

Ao procurar seu assento na primeira fila, reparou na austera presença de Sergei Davidovitch, que ainda exercia a função de ballet master, uns poucos assentos adiante do seu.

No final da apresentação, tomou coragem e se aproximou, contando o quanto quisera um dia fazer parte daquele corpo de baile, e o quanto ainda lhe doía a rejeição.

- Mas minha filha... - disse Davidovitch com uma ponta de ternura - Eu digo isso a todas as aspirantes.

- Como pode ser tão cruel? - protestou Svetlana à beira das lágrimas - Foi uma grande injustiça!

- Perdoe-me, minha jovem... - defendeu-se Davidovitch - Mas você nunca poderia ter sido grande o suficiente, se pôde abandonar seu sonho pela opinião de outra pessoa.

(imagem: "Espera", Edgar Degas)